“A defesa dos direitos humanos nos une enquanto juristas”

O encontro internacional de prevenção e combate à tortura e aos maus tratos no sistema de justiça e criminal foi aberto hoje, na sede da OAB Paraná, com a palestra do desembargador português José Manuel Igreja Matos, vice-presidente da União Internacional de Magistrados e presidente da Associação Europeia de Juízes.

Igreja abriu sua apresentação chamando os presentes a uma reflexão: “O que é isto de ser jurista? Terá nosso trabalho alguma finalidade?”, provocou. “O Direito natural existia para servir a Deus. Depois começou a atender o príncipe, como todos se recordam pela obra de Maquiavel. Em seguida, com a Revolução Francesa, o alvo passou a ser o povo. Finalmente o indivíduo e, muito recentemente, os direitos humanos. A defesa dos direitos humanos nos une enquanto juristas. No Direito, cada um pode se especializar numa área, ficando em sua árvore, mas ninguém pode esquecer da floresta, que são os direitos humanos”, comparou.

Em sua avaliação, a legislação sobre direitos humanos é magnífica. Ele lembrou que o tema está presente na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, e que há também muitos tratados e convenções a dar solidez legislativa ao tema. Apesar da legislação poderosa e dos bons mecanismos de monitoramento, o desembargador apontou casos que pedem maior reflexão para uma visão global da proteção aos direitos humanos.

Tunísia e Bahrein

"No intervalo de um seminário, na Tunísia, um juiz local me disse que minhas palavras eram interessantes mas que, na prática, a tortura para ele funcionava muito bem. Contou-me que os julgamentos eram rápidos, por isso tinha dificuldade em aceitar as ideias contra a tortura. Terminou perguntando o que seria dele sem a tortura? Que resposta dar a ele? A única possível: a de que a tortura é inadmissível em qualquer circunstância. Um jurista não discute essa matéria. Se admitirmos o mero debate, estamos a abdicar de ser juristas”, declarou.

No Bahrein, em outra palestra, não foi uma abordagem privada, mas a reação da plateia que surpreendeu Igreja. Segundo ele, o público parecia alheio à sua mensagem, como se ela não encontrasse respaldo na realidade. “Notei que estava em curso a cultura da aparência. Discute-se o assunto, mas depois volta-se às práticas usuais”, explicou.

Alemanha

Em contraponto, disse o jurista, os alemães discutem tudo. Igreja ilustrou sua afirmação com o caso emblemático do sequestro do menino Jakob von Metzler. A família pagou o resgate, o sequestrador, Magnus Gäefgem, foi detido, mas não havia notícia da criança. Durante o interrogatório, sob tortura, Gäefgem confessou ter assassinado o menino e indicou onde estava o cadáver.  A defesa do réu, claro, conseguiu que a prova obtida por tortura fosse desconsiderada. “E fez-se, na Alemanha, o contrário do que se faz no Bahrein. A questão foi enfrentada, não se cultivou a aparência nem se fez de conta que o problema não existia. Os Tribunal Alemão e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condenaram criminalmente os dois policiais que atuaram no interrogatório e os afastaram de funções operacionais”, explicou.

Gäefgem acabou condenado à prisão perpétua em função de depoimentos da irmã e da confissão na audiência de julgamento, um ano depois. “O tribunal confrontou-se com o fato de não ter um cadáver. Porque a revelação do réu sobre o cadáver não podia ser levada em conta”, pontuou o desembargador.

Inglaterra

Em outra apresentação de caso, o jurista lembrou que a tortura psicológica e física era também muito empregada pela afamada polícia inglesa. “Como fizeram para combatê-la? Agora vou surpreendê-los: com burocracia. Essa solução pode chocar a nós portugueses e brasileiros, que ficamos logo arrepiados à menção desta palavra. Mas foi a forma que os ingleses encontraram para abandonar os maus tratos”, disse.

De acordo com Igreja, a polícia inglesa criou um conjunto de normas de conduta e de procedimentos detalhados que obrigam os agentes a fazer um registro exaustivo de cada situação vivida pelo detido do momento em que entra na delegacia até sua liberação ou condução ao estabelecimento prisional. Todo o interrogatório é gravado e até as pausas para ir ao banheiro precisam estar bem explicadas no relatório. A ausência do documento é, por si só, motivo de penalidade para o agente. Outra norma é recordar, a cada etapa, que o interrogado tem direito a um advogado. “Enfim, a burocracia tem de fato mostrado resultados. E o interessante é que os relatórios são preenchidos em primeira pessoa pelo policial, dando a dimensão da responsabilidade individual pela correta condução do interrogatório”, completou.

Para o jurista, a burocracia traz duas vantagens: ilumina a questão e facilita o trabalho dos advogados. “No século XIX, lembrou ele, Henri Dominique Lacordaire alertou justamente isso: ´Entre fortes e fracos, entre ricos e pobres, entre senhor e servo é a liberdade que oprime e a lei que liberta.´ Ou seja, a liberdade entre partes desiguais pode levar à opressão; é a regra escrita que dá garantias”.

Brasil

Igreja finalizou sua palestra lamentando os problemas com as audiências de custódia no Brasil, onde há sistemático descumprimento dos prazos que as convenções internacionais determinam. “Portugal e Estados Unidos estabelecem 48 horas, a Bélgica 24 horas e a Suécia 96 horas como prazo máximo legal para qualquer réu ser apresentado ao juiz. Infelizmente, no Brasil, não é o que acontece. Aqui, nesta casa especial, lembro do fundamental papel do advogado para lutar por isso. Tudo começa no advogado. Por isso, neste foro é que as situações precisam ser apresentadas com franqueza”, destacou.

Ainda pela manhã, Sylvia Dias, da Associação de Prevenção à Tortura, e Fábio de Sá Silva, do Instituto de Direitos Humanos da International Bar Association (IBAHRI) falaram sobre o papel de cada profissional da área jurídica na prevenção da tortura. No último painel da manhã, Karolina Castro, Maria Gabriela Viana Peixoto e Rafael Barreto de Souza abordaram o papel das políticas públicas na prevenção da tortura e dos maus tratos no sistema de justiça criminal.

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