Conselheiro da OAB fala a bacharéis
Leia o discurso do conselheiro Wilson J. Comel, durante formatura de bacharéis em Direito, em Ponta Grossa, neste mês.
Novos bacharéis em direito: esperança renovada
Wilson J. Comel *
Muitas são as questões que nos afligem nos dias de hoje, a merecer reflexão. O vezo autoritário está a se manifestar com peles de cordeiro, mas não deixa de ser devastador de liberdades, como lobo voraz que é. Só se pensa em aumento de salários pelos que detém o poder público. Decidem em causa própria.
Diante da Declaração Universal dos Direitos Humanos ainda estamos na pré-história em relação ao nosso tempo. Vivemos, no Brasil, um mundo de propaganda enganosa. O amadurecimento político e social continua distante, porque grande o abismo entre as palavras e a realidade, entre o que se promete e o que se pratica.
Ainda que sem o propósito de enfrentar essas contradições, não posso deixar de, ao menos, mencioná-las nesta solenidade de formatura de bacharéis em Direito, agora comprometidos e juramentados com as liberdades individuais e institucionais.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu art. 26, diz que a instrução superior deve estar baseada no mérito, ou, como assinala Norberto Bobbio: Na escola, que não pode deixar de ter uma finalidade seletiva, o critério de mérito é exclusivo, assertiva, porém, que está em cheque, não só com o sistema de cotas, que pretere melhores índices de aproveitamento, mas, de modo especial, com a atual pretensão do projeto de lei em andamento, de iniciativa do Ministro da Educação, defensor de uma tal Democracia Direta, que pretende impor às universidades uma gestão democrática, visando politizar decisões que deveriam ser fruto do avanço do conhecimento, do progresso na formação dos estudantes Parece estar, no ar, uma verdadeira conspiração em curso contra o mérito e o esforço do aprendizado, para minimizar o conceito de merecimento. E a pensar que a Constituição do Império, dos idos de l824, em seu art. 179, inc. 13, dispunha: A lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, e recompensará em proporção dos merecimentos de cada um.
Diz, também, a Declaração Universal, em seu art. 17, que todo homem tem direito à propriedade e que ninguém será arbitrariamente dela privado, sem prejuízo, por óbvio, da sua função social, de conformidade com a lei. Porém, esse princípio contrasta com a leniência das autoridades diante dos abusos do MST agremiação ilegal, que pratica atos ilegais, atenta contra a ordem constitucional e despreza o Estado de Direito; – que se autolegitima a invasões de terras produtivas, de repartições públicas, investe contra o agro-negócio que sustenta nossa balança comercial, numa verdadeira subversão da ordem e da legalidade.
Estabelece, ainda, a Declaração Universal, em seu cânone l8, que todo homem tem direito à liberdade de pensamento, e o 19, à liberdade de opinião e de expressão, de transmitir informações e idéias por quaisquer meios. Todavia, há pouco tempo escapamos da guilhotina da tentada criação do Conselho Federal do Jornalismo, com a finalidade de orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de jornalista, num tempo em que só nos resta a mídia independente para externarmos nossas opiniões e sentimentos, último bastião e instrumento de defesa da democracia. Embora provisoriamente sepultada essa iniciativa, outra, patrocinada pelo Ministério da Cultura, com o mesmo propósito, investe contra a expressão artística cinematográfica e áudio visual, engendrando uma Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual, interferindo no direito de participar livremente da vida cultural assegurado pelo art. 27 da Declaração Universal.
Isso, sem se falar, no controle do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, no garrote tributário pantagruélico, atrelado à irresponsável expansão dos gastos públicos; sem se falar, ainda, no aparelhamento partidário do Estado em curso, na encenada Lei da Mordaça do Ministério Público paladino, a par da Polícia Federal, no combate à corrupção, num país como o nosso, cuja transparência dos negócios públicos deixa muito a desejar, porque mantidos sob a capa do sigilo ou da inacessibilidade aos porões dos privilégios, da propinas e do nepotismo. O segredo no domínio público adverte Bobbio, é capaz de fulminar de morte a vida democrática.[1]
Em arremate, o ensino jurídico em franca decomposição, com a proliferação de cursos mais ditados pelo mercantilismo do que pela formação estrutural dos alunos. Que o digam os exames da OAB, os concursos à Magistratura e ao Ministério Público.
Quer-se, com tais menções, despertar nossa sensibilidade e vocação democrática, sem pretensões de polemizar aqui e agora, senão para visualizar o que vos espera e o obumbrado mundo em que ides acontecer.
Isso mesmo acontecer. Acontecer no plano de vossa existência, no plano da profissão, no da família e da comunidade.
Creio saber o que se passa na cabeça de cada um, a par da perplexidade de encontrar-se agora despido da condição de acadêmico de direito de saliente prestígio – e, de inopino, lançado ao umbral da responsabilidade profissional e na premência de redesenhar o futuro.
Quero ser advogado, liberal ou empresarial; quero ser juiz, estadual ou federal; procurador ou defensor público do Estado ou do Município; delegado de carreira; membro do Ministério Público; melhorar minha situação funcional; advogado autárquico… e por aí afora.
Tudo isso, porém, caros afilhados! ouso dizer, é de somenos, diante do real e profundo significado do grau que acabastes de receber. Há algo mais importante que esse circunstancial de cada um e de seus pais, algo permanente e inerente à pessoa humana do bacharel em direito. Fostes ungidos há pouco e por um juramento que vos fustigará por toda a vida e que só os mais fortes e leais a ele sobreviverão.
O mundo não está precisando de idéias; delas está impregnado, a transbordar pela história afora. Nosso cotidiano está prenhe de palavras. De metáforas que metamorfoseiam a realidade e escondem as verdadeiras intenções. Precisa, isto sim, de comportamentos, de atitudes diante dos convites, das ilusões, do populismo. O homem vale por suas atitudes, que revelam sua estrutura moral, seu caráter, que, muitas vezes, não transparece ou não se traduz em palavras. As palavras, como o vento, voam e se esfumam; os exemplos arrastam e se estabelecem como monumentos.
Lembro o juramento que há pouco fizestes: O Prometo, da tradução latina ego promitto me, significa: declaro a mim mesmo, anuncio, perante minha consciência de bacharel que respeitarei os princípios da honestidade, que agirei com honradez, decência, coerência, recato e decoro social, patrocinando o direito, realizando a justiça e preservando os bons costumes.
Realizar a justiça, como único e insubstituível meio de assegurar a paz entre os homens, mas que a ela, justiça, se chega através da solidariedade, tema, por sinal, abraçado, ecumenicamente, nesta Campanha da Fraternidade.
Ainda que a noção de justiça seja prestigiosa, ressente-se de clareza conceitual, porém, nada obsta a que se enfatize a acepção de consistir em dar a cada um o que é seu, o suum quique tribuere do jurisconsulto romano ULPIANO, que aprendemos a recitar nos primeiros passos de nossa vida acadêmica.
O reclamo dos dias de hoje é no sentido de se obter justiça e não o de fazê-la.
Entretanto, assim não deve ser. No dizer de PONTES DE MIRANDA ao esperar-se por justiça, há de preceder o fazer-se justiça. Aqui, então, os versos do poeta ponta-grossense, Édgard Zanoni: O ato de ajudar é altamente significativo e louvável. E, aparentemente, beneficia bem mais a criatura servida. Puro engano, pois, com certeza, a pessoa que mais ganha é aquela que, prazerosamente, envolve-se na tarefa de colaborar, servir.
Vosso comportamento, vossas atitudes, doravante, inserem-se na função social que vos foi outorgada neste momento; função social esta, segundo PASOLD,[2] que é relacionada com algo ou alguém que tenha condição instrumental e/ou exerça atividade cuja natureza a compromete com o todo social, e, por conseguinte, coloca os valores fundamentais da pessoa humana como sustentadores do interesse coletivo ou do bem comum, no qual ao social deve submeter-se o econômico.
Esse foi o aprendizado e para isso fostes preparados; aprendizado ao qual respondestes com galhardia, com aplicação ao estudo, com entusiasmo, vontade e coragem, tornando-vos aptos para a grande e inestimável tarefa que vos espera.
Enfim, essa a promessa, pela qual fizestes um engajamento, assumistes um ministério, uma função. Na forja dessa promessa, temo-vos homens e mulheres de fé e de coragem bastante para se oporem à emasculação do mérito, às tentativas de amputar a liberdade de opinião e de expressão, às manobras do silêncio ou da dubiedade para manter o obscurantismo, a desordem e o autoritarismo irresponsável que atentam contra o Estado Democrático de Direito.
Que possamos dizer, como, certamente, diremos, ao final de cada embate, esse foi nosso aluno. E os pais, com justo e incomparável orgulho, esse é nosso filho.
* Wilson J. Comel é advogado, conselheiro estadual da OAB Paraná, professor aposentado de Direito Civil na UEPG, professor da Escola da Magistratura do Paraná do Paraná, membro do Instituto dos Advogados do Paraná e da Academia de Letras dos Campos Gerais.
[1] Marília Muricy, XVIII Conferência Nacional dos Advogados, Conselho Federal da OAB, vol. II, p. 1.607.
[2] Citado por Vanderlei Krombauer Bonatto, XVIII Conferência Nacional dos Advogados, Conselho Federal da OAB, vol. II, p. 1.851/2.
