Uma reportagem publicada na edição desta semana da Revista Época mostra gastos do Poder Judiciário e do Ministério Público Federal com a construção de novas sedes
Para faraó nenhum botar defeito
Os prédios suntuosos erguidos pelo Judiciário em Brasília, ao custo de R$ 2,1 bilhões, são uma prova de como é possível cortar gastos no poder público
ISABEL CLEMENTE E MURILO RAMOS
Visto assim do alto, o setor de administração Federal Sul, em Brasília, mais parece o céu no chão. Nesse pedaço da capital, à direita da Praça dos Três Poderes, o Judiciário e o Ministério Público Federal vêm erguendo há dez anos um dos mais sofisticados e dispendiosos conjuntos de edifícios públicos do país. Os prédios do Superior Tribunal de Justiça (STJ), do Tribunal Superior do Trabalho (TST), da Procuradoria-Geral da República e do anexo do Supremo Tribunal Federal (STF) compõem um monumento comparável às Pirâmides de Gizé, erguidas por escravos para sepultar os faraós do antigo Egito. No Vale dos Tribunais foi sepultado mais de R$ 1,3 bilhão de dinheiro oficial, a preços atualizados. Outros R$ 800 milhões serão gastos nas novas sedes do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Tribunal Regional Federal (TRF-1), que ficarão prontas em três anos.
São pirâmides de aço, concreto e vidro que trazem a assinatura de Oscar Niemeyer e exibem números monumentais. Só na estrutura do prédio do STJ, com paredes de meio metro de espessura, foram consumidos
O concreto usado na sede do STJ daria para construir uma centena de edifícios comuns de dez andares. São
Não questiono a necessidade de os tribunais terem uma nova sede ou de ampliarem seu espaço. Mas é como se eles precisassem de um carro e comprassem uma Ferrari, diz Conrado. A quantidade de Ferraris estacionadas no Vale dos Tribunais é compatível com a cultura do exagero e do desperdício de dinheiro público no país. Mas é um desafio à lógica que se mantenham os planos de construção do TSE e do TRF-1 no momento em que se discute um corte profundo nos gastos federais, para compensar o fim da CPMF. O imposto do cheque, extinto em dezembro pelo Senado, seria responsável por uma receita de R$ 38 bilhões em 2008, que não existe mais.
O governo pediu ao Legislativo e ao Judiciário que reduzam suas despesas para cooperar em um corte de R$ 20 bilhões em
Não é só o Judiciário que foge do corte de gastos. O Congresso também resiste a limitar os gastos que acrescenta ao Orçamento s por meio de emendas de parlamentares. O próprio Executivo ainda não mostrou qual será sua cota de sacrifício. Nos bastidores, técnicos do governo sussurram que o corte pode até ficar abaixo de R$ 5 bilhões porque a arrecadação de impostos vai crescer com a economia do país. Mesmo assim, não se justificam o desperdício e o mau uso do dinheiro público. Ninguém precisa de prédios como o novo do TRF-1. Que ganhos práticos a sociedade vai ter com esses edifícios gigantescos?, pergunta Nelson Marconi, da FGV. Os prédios suntuosos do Judiciário apresentam uma face concreta do problema, mas há outros casos de desperdício e mau uso de verbas no governo e no Congresso.
Pior que ter um prédio suntuoso é ter um imóvel sem uso. Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) identificou 571 imóveis públicos federais abandonados. São terrenos e edificações que valem pelo menos R$ 2,6 bilhões e geram apenas gastos de manutenção para o governo. Outra auditoria do TCU divulgada no ano passado indicava um prejuízo para a União de pelo menos R$ 1 bilhão com 400 obras interrompidas em todo o país. Algumas, como estradas, hospitais e até escolas, foram quase integralmente pagas, mas não estão em condições de ser usadas. Isso tudo é dinheiro que se jogou fora, diz o ministro do TCU, Ubiratan Aguiar.
A sociedade não agüenta mais o mau gasto e está cobrando providências do governo para gastar melhor, diz o economista Raul Velloso. Por exemplo, gastando menos em passagens aéreas e diárias, dois itens de despesas não obrigatórias que sempre crescem. Os gastos com passagens aéreas previstos para 2008 são de R$ 990 milhões, 32% a mais que no passado. O gasto com diárias também vai subir 13%, passando para R$ 770 milhões neste ano. Não existe controle efetivo sobre essas despesas. Raras vezes são apresentadas justificativas plausíveis para as viagens, afirma José Matias Pereira, economista da Universidade de Brasília e especialista em contas públicas.
O desperdício que viaja de avião também pode andar de carroça. Cerca de 10 toneladas de papel são descartadas todos os dias na Esplanada dos Ministérios. É parte dos R$ 80 milhões que o governo gasta, todos os anos, em fotocópias, de acordo com a ONG Contas Abertas. Ao contrário do governo, que joga fora, há cerca de 500 catadores de papel que recolhem esse lixo para revender. Eles desfilam pelas vias futuristas de Brasília em carroças puxadas por cavalos esquálidos. Se não fosse a papelada dos ministérios, a nossa situação seria horrível, diz Francisco Lobato, da associação de catadores da Vila Planalto. Nosso pessoal cata umas 5 toneladas por mês, o que rende uns R$ 500 para cada carroceiro.
Uma idéia recorrente, mas nem sempre eficaz, para reduzir despesas é transferir recursos públicos para ONGs que prestam serviços públicos e desenvolvem ações sociais. A quantidade de desvios detectados nesses contratos mostra que eles estão mais perto de ser um problema que uma solução. Os repasses a ONGs e outras entidades, quando não são desviados, não são aplicados como deveriam, diz a procuradora da República Raquel Branquinho. Outra idéia que tem se mostrado ruim é o uso de cartões de crédito especiais por altos funcionários. Na teoria, eles serviriam para pagar pequenas despesas sem burocracia. Na prática, estão permitindo uma série de abusos (leia quadro).
Com essa estrutura toda, todos esses ministérios, fica difícil economizar até em itens como papel, diz Nelson Marconi, da FGV. Materiais considerados descartáveis, como lápis, canetas, disquetes e clipes devem pular de R$ 5,9 bilhões em 2007 para R$ 6,5 bilhões neste ano. O governo deveria também premiar funcionários de ministérios ou órgãos que economizam. É uma forma de estimular o corte de gastos.
Um programa desse tipo foi adotado a partir de 2007 pelo governo de Minas Gerais. As despesas correntes foram separadas entre boas (medicamentos, combustível para a polícia, material escolar) e ruins (consultorias, gastos com telefone e energia, material de escritório). Um decreto do governador Aécio Neves estabeleceu metas de redução das despesas ruins. As secretarias e as empresas que cumpriram as metas usaram parte da economia para pagar prêmios de produtividade aos servidores. Segundo o governo do Estado, foram poupados cerca de R$ 50 milhões em 2007.
É impossível calcular o quanto poderia ser economizado com programas desse tipo numa escala federal e com um controle mais eficiente dos gastos. A pior atitude, certamente, é não enfrentar o problema, contando com um aumento na arrecadação de impostos. Se a arrecadação subir e o governo concluir que não precisa mais cortar gastos, será uma pena. Desperdício de dinheiro público é sempre desperdício, com ou sem CPMF, diz o economista Alberto Ramos, analista sênior para a América Latina do banco de investimentos Goldman, Sachs. É uma lição que vale para contribuintes e faraós. Do antigo Egito ou da moderna Brasília.
