Em entrevista à revista da Associação Nacional dos Magistrados Trabalhistas, o advogado paranaense José Affonso Dallegrave Neto faz uma análise da atual conjuntura e fala sobre as consequências da crise econômica mundial nas relações de trabalho no Brasil. Confira a íntegra da entrevista:
A CRISE ECONÔMICA CHEGOU.
QUAIS OS DESAFIOS PARA O DIREITO DO TRABALHO?
– Quais serão as conseqüências da crise econômica mundial para o mercado de trabalho brasileiro?
A crise se iniciou a partir de empréstimos de créditos “subprime” de bancos americanos. Havia tanto dinheiro sobrando e tanta vontade de lucrar que os bancos passaram a adotar uma política arrojada (e inconsequente) de oferta de empréstimo pessoal.
De um lado um consumidor empolgado em comprar cada vez mais, de outro a flexibilização das garantias e fianças como forma de seduzir o americano de classe média e baixa. Isso tudo sob o aval de um Estado Neoliberal, sempre frouxo e permissivo em assuntos de cunho financeiro e especulativo.
O resultado foi a bancarrota dessas instituições com dimensões globalizadas em face da capilaridade do sistema financeiro. O medo se instalou gerando retração dos bancos na concessão de novos empréstimos. Sem crédito disponível as empresas deixam de expandir, os lucros caem, as dispensas coletivas de empregados passam a ser uma das alternativas de baixar o custo da produção. Com o aumento do número de desempregados e a redução da oferta de crédito pessoal, o mercado de consumo se retrai. Como conseqüência, o Produto Interno Bruto (PIB) se atrofia e os preços das ações despencam. Surge a recessão e, se não houver um dique, poderá vir a depressão da economia.
No meio desse colapso do mercado está o trabalhador e sua família; desempregado, assustado e com poucas perspectivas. Ceifado de sua fonte de subsistência, o trabalhador perde sua honra e dignidade. Nas palavras do poeta Gonzaguinha : “Sem o seu trabalho o homem não tem honra. E sem a sua honra se morre… se mata. Não dá pra ser feliz, não dá pra ser feliz”.
– Na sua opinião, quais devem ser as atitudes do governo diante desse cenário de crise?
Em tempos de crise aguda, como a que estamos vivenciando, não há dúvida de que todos devem colaborar. O governo deve agir com rapidez e intervir nas relações econômicas de forma a afetar o mercado de trabalho. Em primeiro lugar é preciso desonerar os tributos fiscais e previdenciários sobre a folha de pagamento dos salários. Aliado a isso deve-se aumentar a oferta de crédito com juros baixos a fim de aquecer o mercado de consumo e os investimentos das empresas. O impacto dessas medidas será principalmente o de refrear o desemprego e reaquecer o consumo.
Nesse sentido, o novo presidente do TST, Milton de Moura França, assinalou para o repórter da Agência Brasil que “é preciso desonerar a folha de pagamento para que seja mantido o emprego”.
Contudo, não se pode confundir a medida de “desoneração fiscal e previdenciária do salário” com a de “supressão de direitos trabalhistas”. Particularmente defendo a primeira e sou refratário à segunda.
– E quanto à contribuição dos empresários, como ela deve ser feita?
Os empresários devem se conscientizar que a fase áurea de lucros elevados está provisoriamente suspensa. Se é verdade que os lucros vêm caindo de dezembro para cá, também é fato que tivemos um momento de forte prosperidade para as empresas durante os três últimos anos.
Logo, é o momento das corporações utilizarem suas reservas financeiras nesse atual estágio de instabilidade econômica. Da mesma forma é o momento de impor limites éticos ao capital meramente especulativo. Só para se ter uma noção do grau de financeirização do capital, registre-se que a acumulação dos valores da bolsa e dos ativos financeiros em posse dos bancos comerciais representa mais de quatro vezes o PIB mundial. Ainda, o valor nocional dos contratos fixados no mercado de derivativos representa mais de dez vezes o produto mundial. Uma verdadeira bolha.
Destarte, é inadmissível que após um extenso período de livre lucratividade desenfreada, doravante essas mesmas empresas, principalmente as de capital meramente especulativo, passem a utilizar o mote da crise e do desemprego como justificativas para deixarem de cumprir sua função social e aumentarem a taxa de exploração do trabalho, ainda que sob o rótulo eufêmico da “flexibilização do direito do trabalho”.
A maior crítica que se faz ao regime capitalista é que ele repudia a socialização do lucro ao mesmo tempo em que propugna, em tempos de crise, pela socialização dos prejuízos. Com outras palavras, o capitalista anela liberdade irrestrita para lucrar, mas pede intervenção protetiva do Estado e da sociedade para compartilhar a crise.
– Qual a opinião do senhor sobre os acordos coletivos? Eles podem baixar os salários, mas, em compensação, evitar demissões?
Uma das medidas mais praticadas em tempos de crise é o de celebrar acordos que objetivem a redução do salário. O artigo 503 da CLT permite em caso de força maior ou prejuízos devidamente comprovados que a empresa reduza o salário em índice nunca superior a 25% e desde que se observe a redução da jornada na mesma proporção. Em qualquer situação o valor do salário mínimo deve ser garantido. A Lei 4923/65 prevê que tal pacto deve perdurar no máximo por três meses, prazo prorrogável nas mesmas condições, se indispensável for.
Essa disposição de redução salarial somente terá validade se estiver fixada em “convenção ou acordo coletivo de trabalho”, conforme dispõe expressamente o art.7º, VI, da Constituição Federal. Além de tais requisitos legais importa compatibilizar esta medida com os princípios constitucionais do Direito do Trabalho. Vale dizer: o ajuste entre as partes tem em mira a valorização do trabalho humano, a função social da empresa e a busca do pleno emprego (art. 170, III e VIII, da CF).
Assim, se de um lado a classe trabalhadora negocia coletivamente a redução nominal e proporcional do seu salário, de outro, a classe patronal deve garantir expressamente a manutenção do emprego no período correspondente ao acordo. Qualquer ajuste em sentido diverso incorrerá em fraude à lei por desvirtuamento do instituto (art. 9º, da CLT), além de ofensa direta à Constituição Federal. Não se ignore que a melhor exegese sistêmica da ordem jurídica pugna pelo reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho (inciso XXVI), visando “à melhoria da condição social do trabalhador” (caput do art. 7º.). O Judiciário Trabalhista deve estar atento aos requisitos de validade desse acordo de redução salarial, quando da apreciação de sua eficácia jurídica.
– Na sua opinião, a crise faz repensar a ideologia social do Direito do Trabalho?
A premissa neoliberal capitalista sempre foi clara e incisiva: “Estado não regula lucro; Estado regula o mercado somente em casos excepcionais e para favorecer o próprio capital”. Ocorre que foi a partir da utilização gananciosa dessa premissa que levou os bancos americanos a concederem empréstimos de forma irresponsável, implicando uma crise generalizada e globalizada.
Sob o ponto de vista filosófico, percebe-se que o dogma neoliberal sucumbiu, inaugurando-se um novo paradigma: o Estado deve sim intervir na economia não apenas para favorecer o lucro ou legitimar o capital especulativo, mas para regulamentar o mercado a partir de regras mais claras de responsabilidade social, a exemplo dos empréstimos de dinheiro público condicionados à aprovação de planos de manutenção de emprego por parte das empresas beneficiadas. Essa interferência estatal de certa forma já se iniciou, a exemplo da política de estatização de bancos privados e redução da autonomia dos bancos centrais.
Sob o ponto de vista jurídico, verifica-se um avivamento das diretivas constitucionais fincadas para a ordem econômica. Com outras palavras: é chegada a hora de lembrar e aplicar o velho artigo 170 da Carta Constitucional de 1988 em sua plenitude .
– Quais suas considerações finais sobre o tema da crise e o impacto nas relações de trabalho?
É no momento de grandes crises econômicas que o Direito do Trabalho ganha importância social. Assim como a sua gênese ocorreu em uma época de exploração propiciada pela Revolução Industrial e por um momento de reconstrução dos direitos humanos pós-Guerra Mundial, penso que o momento hodierno é de fazer valer os postulados sociais do Direito do Trabalho a fim de evitar o caos da sociedade como um todo.
Pequenas e pontuais flexibilizações na legislação trabalhista, a exemplo do regime de banco de horas e suspensões negociadas, são oportunas quando utilizadas no estrito sentido da lei. Entrementes, não se pode admitir a mitigação da proteção ao trabalhador ou mesmo a desregulamentação do Direito do Trabalho; sendo este o ramo jurídico mais profícuo e emblemático para evitar um colapso social em tempos de crise econômica internacional. Não por acaso que o último Relatório da OIT propugna, com acerto, pela implementação de uma “agenda do trabalho decente” como a melhor resposta para a crise.
* Entrevista concedida à jornalista Sandra Turcato, em 6 de março de 2009.
