Em saudação aos novos advogados, Jacinto Coutinho dirige discurso aos pais




A cerimônia de compromisso coletivo, realizada na última quarta-feira (05), teve como convidado o professor e conselheiro federal da OAB Paraná Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, que fez a saudação aos novos advogados. Em seu pronunciamento, Jacinto Coutinho, além de dar orientações aos compromissandos sobre o exercício da advocacia,  prestou uma homenagem aos pais. Sua filha, Maria Francisca de Miranda Coutinho, foi uma das novas advogadas a prestar o juramento. Confira a íntegra do discurso:

P A R A   S E R   A D V O G A D O:
DECLARAÇÃO DE AMOR PARA MARIA FRANCISCA
 
                                                             Jacinto Nelson de Miranda Coutinho**
              
    Quando, no dia 02.04.86, por volta das 21h, o Dr. Acir Rachid, meu sogro, médico excepcional e de escol, professor titular da Faculdade de Medicina da UFPR, saiu da Sala de Parto da Maternidade Curitiba e com um enorme sorriso na face entregou-me uma bela criança recém-nascida, foi logo dizendo: “Veja aí que bonita. Diga se eu não tenho razão?”
    Era minha primeira filha e naquela massa de carne e ossos havia, ainda desconforme pelo parto apenas terminado, algo mais: havia um sopro de vida! O hálito de Deus se fizera presente na sua forma mais pura e eu já ganhara o direito de, pela forma da existência, poder melhor entender meus próprios pais.
    O Dr. Acir Rachid, porém, estava a falar de outra coisa; ou quase. Ele dizia sobre uma sua teoria que só ali pude entender. Tempos passados, no meio de uma conversa dominical prazerosa, depois de um almoço em família, discorrendo sobre o que seria o amor pelos filhos a um interlocutor um tanto incrédulo e muito racional, foi enfático: “É difícil dizer o que é mas, com certeza, só se sabe dele quando se tem um filho!” 
    Naquele corredor de maternidade pude comprovar a precisão da teoria dele. Para alguém como eu que nunca havia sentido saudade de ninguém e de nada; que imaginava poder dominar o circundante com os olhos de lince e dar conta dele, aquilo foi um golpe de misericórdia, restituindo-me ao mundo. Estava decretado o nascimento de um outro homem, incrivelmente nascido pelo ato de nascimento de sua filha.
    Daí para frente, em qualquer circunstância, sempre havia algo mais a ser tomado em consideração. Aquele “sopro de vida” passou a me cobrar, em todas as hipóteses, um raciocínio a mais. E era – e é – algo que se não explica, mesmo porque a demanda de alguém com aquele tempo de vida, por razões óbvias, vai dirigida à mãe. Mas ela falava sem falar; impunha um comportamento sem cobrar; determinava a minha própria existência.
    Sobre o amor de um pai – ou uma mãe – só pode dizer que já foi!
    Ele é tão forte e presente que, pelos mistérios da vida, embaça – ou pode embaçar – as funções paterna e materna, colocando em risco a própria existência de ambos, pais e filhos.
    Eis por que uma das maiores dificuldades às funções paterna e materna é ter presente, sempre, tratar-se, aquele “seu” filho, de um outro, singular na sua própria existência. Prover e limitar são dois verbos que os pais, com certeza – inclusive pela memória das suas próprias construções pessoais – se pudessem banir do léxico, fariam-no. Elas são, sem dúvida, os grandes empecilhos na busca da plena satisfação, aos pais e aos filhos mas, como se sabe (embora cada vez menos se queira saber), sem elas não se fundam os sujeitos.
    Essa é a razão pela qual para ser pai e mãe é preciso ser, antes, filho. E para ser filho é preciso reconhecer que há pais. São, portanto, “lugares”. Lugares que se comunicam pela linguagem; e que fazem daqueles verbos (prover e limitar) os grandes obstáculos a serem, antes de tudo (porque imprescindíveis), compreendidos.
    Chega a ser paradoxal: dizer “não” a um filho é (como a maior forma de “limitar”), quem sabe, a maior demonstração de amor que se possa ter. Mas isso não é fácil de entender.
    As dificuldades da vida, cada vez mais, têm “criado” pais que se não dão conta disso e, por conseguinte, como que para amainar uma culpa pela própria existência – ou os problemas nas suas construções subjetivas – tratam de “só prover”, impedindo que se deseje, ou seja, aquilo que decorre dos “limites”.
    Quem não deseja, porém, desliza. Desliza procurando suprir uma demanda proveniente da falta de desejo, justo o que faz a vida sem sentido, enfadonha, sem gosto, sem cor. Eis por que, hoje, está tão difícil ter compromissos. Eis por que, hoje, vivemos o martírio das drogas. Eis por que, hoje, não se quer pensar no futuro e, no mais das vezes, quer-se gozar tudo, como se fosse possível e não houvesse limite.
    A sociedade ocidental tem comprometida, por isso, a ética que lhe deve reger. E sem ela é complicado pensar num futuro de abundância para todos.
    É complicado mas não é impossível.
    O mais difícil, quem sabe, já estamos conseguindo fazer, ou seja, identificar o problema e, assim, dar o primeiro passo a algo diverso.
    Mudar, porém, exige um esforço maior: é preciso não só reconhecer a “diferença do outro” como tomá-lo como tal. Isso, em verdade, muda as perspectivas. Amor, democracia, ética – dentre outras – são coisas possíveis tão só apesar da “diferença do outro”. Eis, então, onde fala mais forte o “humano” que há em cada um de nós, feito Disso que nos é singular.
    Para um profissional, porém, há uma ética específica, a qual não exclui, antes de tudo, o respeito pela diferença.
    Vocês, hoje, ao prestarem este Compromisso como Advogados, poderiam levar essa singela mensagem de um advogado já maltratado pelo tempo, após 35 anos de lidas advocatícias, mas com alguma experiência.
    Se o amor está na base da ética; e se a ética está na base da democracia, parece sintomático que na base de todos está o “respeito pela diferença”. Vocês, agora, ganham um “lugar” privilegiado, no qual não há espaço para não se enxergar Isso. Um advogado sem essa percepção é alguém que ainda não se constituiu como tal.
    Para tanto, não basta ser um dos 867 aprovados de um montante de 4.573, ou seja, ser um dos 18,96% dos aprovados. O Exame de Ordem é um obstáculo, sem dúvida. Mas é, sobretudo, “um ritual de passagem” e, assim, a par do conhecimento (ainda cobrado no mínimo), ele demanda uma “tomada de posição”.
Daí a razão pela qual o Estatuto da Advocacia e da OAB exige dela – e, assim, de todos nós –, antes de qualquer coisa, “defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas;” (art. 44, I, Lei nº 8.906, de 09.07.94). Aí está, dentre outras coisa, a razão por que “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.” (art. 133, CR).
          Para ser advogado é preciso entender e praticar esse “lugar”, após o Exame marcado pelo conhecimento, única forma correta de se seguir adiante em uma estrutura onde as regras de mercado tendem a prevalecer. Estudar, portanto, é o desafio de cada um, que o sabe ser o meio para o fim vitorioso. Há, porém, o preço a pagar e, para tanto, é preciso ter disposição mas, sobretudo, maturidade. Cada um, nesse “lugar”, sabe sobre os limites (os seus) e deve tratar, por si só, de prover o seu futuro. “Sem pai nem mãe” é preciso amar a si mesmo, antes de tudo, o que não significa esquecer os outros (ou muito pelo contrário), ou melhor, é cuidando de si que se tem condições de olhar para os outros e ter olhos para eles. Neste aspecto, os advogados são, de fato, privilegiados.
Por isso que pertencer à classe mais forte do país é um orgulho que se não presta a todos ou a qualquer um. Com mais de 600 mil membros, a OAB é, com todos os seus problemas, um exemplo de democracia; e seu Estatuto o arsenal a ser respeitado e defendido. Não se trata de conversa; trata-se de ação. Como diziam os romanos, é re non verbis. Atuar corretamente como advogado e participar da OAB é a mais lídima forma de fazer de sua profissão um verdadeiro sentido para a vida; para a vida de todos; e com abundância.
    Vocês são os filhos que produzimos para a vida; e com o passaporte que recebem hoje estão habilitados a “andar com a própria perna.” Que o façam bem-feito!
Sobre isso, ninguém melhor que Kahlil Gibran (O profeta. Trad. de Eduardo Pereira e Ferreira. São Paulo: Editora Nova Alexandria, 2002, pp. 21-2):
“E uma mulher que apertava o filho pequeno contra o peito disse: ‘Fale-nos dos filhos’.
E ele disse:
‘Seus filhos não são seus filhos.
Mas sim filhos e filhas do anseio da Vida por si mesma.
E embora estejam com vocês, não lhes pertencem.
Vocês podem lhes dar seu amor, mas não seus pensamentos.
Pois eles têm pensamentos próprios.
Podem abrigar seus corpos, mas não suas almas,
Pois as almas deles residem na morada do amanhã,
que vocês não podem visitar nem mesmo em sonhos.
Vocês podem se esforçar por ser como eles, mas não busquem moldá-los à sua própria imagem.
Pois a vida não retrocede, nem se demora no ontem.
Vocês são os arcos dos quais seus filhos são lançados como flechas vivas.
O Arqueiro que divisa o alvo na trilha do infinito, e retesa o arco por Seu poder para que Suas flechas possam seguir rápidas e voar longe.
Que vocês cedam de bom grado à mão do Arqueiro;
Pois da mesma forma que Ele ama a flecha que voa, ama também o arco que fica’.”

** Professor Titular de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Especialista em Filosofia do Direito (PUC-PR); Mestre (UFPR); Doutor (Università degli Studi di Roma “La Sapienza”). Coordenador do Núcleo de Direito e Psicanálise do PPGD-UFPR. Advogado. Procurador do Estado do Paraná. Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil pelo Paraná. Membro da Comissão Externa de Juristas do Senado Federal que elaborou o anteprojeto de CPP, hoje Projeto nº 156/2009-PLS.

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