Falando de fraternidade

Confira a íntegra do discurso feito pelo Ministro Luiz Edson Fachin na abertura da semana Edésio Passos, na segunda-feira, 3 de abril, no Salão Nobre da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná.

"Em dezembro pretérito, acedi ao honroso e obstinado convite de André, filho desta Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, para integrar-me num então distante abril de 2017 a evento do Instituto que se hospedaria sob o nome de seu pai, Edésio Passos.
Eis-nos agora em abril, golfados pelo notório evento trágico de janeiro; a pauta que se instalou em nossos afazeres funcionais na sequência agasalhariam o declinar dessa honra.

Resolvi, nada obstante, associar-me ao coro de vozes que não são avessos ao ouvir e ao dialogar, e não se furtam de cumprir a vida; mais que isso: o convite de um filho que pranteia seu pai rende homenagens a todos aqueles aqui chamados a esta celebração.

Por isso, genuinamente sensibilizado e honrado, dedico, na comunhão deste momento, breves e sucintas ideias que, em caráter pessoal, não se circunscrevem ao homem, mas sim a um dos fios condutores da existência de alguém que, entre ventos e tempestades, em todos os seus nascimentos, se fez um ser como presença.
 
“A vida, ela toda, é um extenso nascimento”, escreveu de Moçambique num de seus contos Mia Couto. Nesta data certifica-se, pois, marco de outra nascença.

Na advocacia, no exercício da cidadania e na vida acadêmica o Edésio que conheci falava o idioma da fraternidade; não é necessário ter compartilhado todas as teorias ou práticas para saber que o amplo torrão da fraternidade sempre foi esse território que se encontravam todos que nasciam naquele tempo de pequenas manhãs e noites longas.
Ali, a fraternidade tecia desafios precisamente para saber como rasgar o silêncio.
Ali frutificaram inquilinos de uma esperança que se revelou extensa.  Mais extensa do que então se poderia supor.
E ali, coerentes com suas ideias e experiências, nasceram pessoas que, cada uma a seu tempo, a seu modo, nos seus limites, e à luz de seus sonhos, convicções e desejos, tomaram a sério a lição de Martin Luther King Jr e decidiram andar na senda do altruísmo criativo que reprocha o egoísmo destruidor.
Encontro nisso razão suficiente para aqui estar.

Ter esse abrigo é cartografar uma geração, um ideário e um país de sentidos. Nesse continente de significados, nascemos e morremos muitas vezes. Assim se fez com algumas alegrias, mas também experimentamos o sabor ácido do atestado de tristezas. Desafia-nos, pois, o contínuo renascimento.

Nessa quadra dos dias correntes, em que a existência de muitos se despe da bondade, do respeito à diversidade, e mesmo da liberdade plena, um tempo íngreme desautentica os residentes da fraternidade, tornando-os estrangeiros em sua pátria.
A hostilidade ao Outro, ao diverso, ao diferente, e que imbui a ansiedade legítima até certo ponto de ser ouvido, não importa o custo e a consequência dessa pulsão, tem, no seu ethos, pontos em comum com a ausência de consensos mínimos no primado dos princípios que estruturam a vida política e jurídica.

Para obstar que os olhos somente enxerguem impossibilidades, o estado da arte sugere recuperar, nas raízes da democracia e da liberdade, a fraternidade que escuta o mundo em sua essência, aquela que guarda o universal tamanho da esperança.

Façamos, pois, um breve percurso no mapa geográfico da fraternidade. Para além do étimo frater, a derivação significa afetiva associação ou comunidade, identificando carências a serem supridas.

Capturada semanticamente em 1789, a palavra foi bandeira a justificar a exigência de sufrágio universal, instrução cívica e política do povo. A isso antecedente, nos textos de Ettiénne de la Boétie, o significante aparece como categoria de pensamento. Para ele, a fraternidade, “reconhecida e vivida pela razão como laço natural, cria a compaignie, que mais tarde seria chamada de igualdade, a qual, no pensamento de La Boétie, permite a liberdade” (Baggio, 2009).
Está, a rigor, desde o século XVII na fundação do universalismo moderno, ora como agregação, especialmente no clamor à liberdade, ora como veículo de disseminação dos ideais iluministas.
A contemporaneidade chamou ao palco mais diretamente a liberdade e a igualdade, alçadas em diversas Constituições como alicerces de estruturação dos Estados e dos valores da sociedade; fez-se uma ponte entre a liberdade e os direitos fundamentais, especialmente civis e políticos, e a igualdade e os direitos sociais e econômicos. Em segundo plano, nessa normatividade, teria ficado a fraternidade.

Trata-se, mais recentemente, de alguma redescoberta no estatuto de princípio. Chiara Lubich na Itália do pós-guerra, recupera a fraternidade como uma “categoria de pensamento capaz de conjugar a unidade e a distinção a que anseia a humanidade contemporânea”. O movimento busca estabelecer uma visão do Direito e da Justiça. Ao final do século XX e ao início do século XXI ressurgem estudos sobre a fraternidade no campo do Direito e da Política. Na Itália ainda, Antonio Maria Baggio desponta a escrever sobre a fraternidade como categoria política e organiza obras importantes na retomada do princípio.

Aqui mesmo, neste Salão Nobre da Faculdade de Direito muitos de nós haurimos lições sobre muitos temas, incluindo sentidos da fraternidade: cito, para lembrar, os saudosos professores Lamartine Correia de Oliveira, Francisco José Ferreira Muniz, e mais recentemente sobre a questão aqui haurimos lições do lúcido e eminente Professor António Manuel Hespanha.

No Brasil, o tema ingressou na travessia que faz dialogar o direito e a vida pública. Por exemplo, citemos o Ministro Carlos Ayres Britto, que define, na obra sobre o humanismo como categoria constitucional, a fraternidade como “o ponto de unidade a que se chega pela conciliação possível entre os extremos da liberdade, de um lado e, de outro, da igualdade”. Além disso, na “Teoria da Constituição”, desenvolve o conceito de “constitucionalismo fraternal”:

“(…) Desde que entendamos por Constitucionalismo Fraternal esta fase em que as Constituições incorporam às franquias liberais e sociais de cada povo soberano a dimensão da Fraternidade; isto é, a dimensão das ações estatais afirmativas, que são atividades assecuratórias da abertura de oportunidades para os segmentos sociais historicamente desfavorecidos, como, por exemplo, os negros, os deficientes físicos e as mulheres (para além, portanto, da mera proibição de preconceitos). De par com isso, o constitucionalismo fraternal alcança a dimensão da luta pela afirmação do valor do Desenvolvimento, do Meio Ambiente ecologicamente equilibrado, da Democracia e até de certos aspectos do urbanismo como direitos fundamentais. Tudo na perspectiva de se fazer da interação humana uma verdadeira comunidade. Isto é, uma comunhão de vida (…).

Se a vida em sociedade é uma vida plural, pois o fato é que ninguém é cópia fiel de ninguém, então que esse pluralismo do mais largo espectro seja plenamente aceito. Mais até que plenamente aceito, que ele seja cabalmente experimentado e proclamado como valor absoluto. E nisso é que se exprime o núcleo de uma sociedade fraterna, pois uma das maiores violências que se pode cometer contra seres humanos é negar suas individualizadas preferências estéticas, ideológicas, profissionais, religiosas, partidárias, geográficas, sexuais, (…) etc” (BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p, 216-217.).

Colhe-se nessa linha, a afirmação segunda a qual "o constitucionalismo fraternal é aquele que reconhece a diferença entre os homens e não tenta assimilá-la, mas sim respeitá-la. Fixam-se regras básicas de convivência, como o respeito aos direitos fundamentais e à democracia e, uma vez cumpridas essas condições, aquela minoria, substancialmente diferente da maioria, tem total direito de viver sua vida de acordo com suas crenças e convicções" (Emanuel de Melo Ferreira, Procurador da República, Professor da Universidade Federal do Ceará).

Não é, por certo, a chave de todas as portas nem o caminho pelo qual somente transitam acertos.

Por essa senda, nada obstante, a fraternidade pode concebida mais forte no sentido da solidariedade, do pluralismo, e de preocupações em temas envolvendo índios, quilombolas, negros, mulheres, refugiados, pessoas com deficiência. O sentido constitucional de fraternidade, atualmente, apreende o de integração e de criação de políticas públicas e ações afirmativas protetivas.

Emerge, então, uma espécie de direito Fraterno (na expressão de Eligio Resta, para que o direito deve estar pautado no compartilhamento de regras mínimas de convivência, apoiando-se na não-violência e no cosmopolitanismo), ou de um direito Altruísta (como sustenta Michele Carducci – o processo de interpretação deve levar em consideração o bem comum, a cidadania, a necessidade e uma profunda mudança cultural.

Há, pois, expressões na normatividade jurídica.

A origem, ou seja, o reconhecimento normativo da fraternidade como valor universal, pode ter emergido na Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, que em seu artigo 1º, assim dispunha: Todas as pessoas são dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.

No Brasil, a principal referência à fraternidade se deu com o preâmbulo da Constituição Federal, a qual absorveu os três valores da Revolução Francesa ao proclamar: “(…) a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (…)”.

No inciso I do artigo 3º, a Constituição prevê que a solidariedade constitui um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

No artigo 40, por exemplo, é estabelecido o caráter solidário do regime de previdência. O artigo 170 dispõe que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a existência digna, conforme ditames da justiça social, observados, dentre outros, o princípio da redução das desigualdades regionais e sociais.

O artigo 230 impõe à família, à sociedade e ao Estado o dever de amparar as pessoas idosas, o que deu origem à Lei 8.842/94, que trata da política nacional do idoso.

A experiência dessa normatividade constitucional moderna está em outros textos, a exemplo da Constituição Portuguesa de 1976 também traz em seu preâmbulo a necessidade de “assegurar o primado do Estado de Direito democrático (…), tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno”.

Também está em julgados no âmbito do Supremo Tribunal Federal, ali se utilizando a ideia ou o conceito; vejamos alguns casos:

Encontramos a expressão nos seguintes julgamentos: Pet 3388 – demarcação de terras indígenas; ADI 3510 – pesquisas com células-tronco embrionárias; ADPF 132 – união homoafetiva.

Na Pet 3388 (Rel. Min. Carlos Britto, julgamento em 19.03.2009), o STF anotou que os artigos 231 e 232 da CF são de “finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-valor da integração comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguística e cultural. (…). Concretização constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da identidade étnica.”

Quando do julgamento da ADI 3510, disse o ministro Britto: “A pesquisa científica com células-tronco embrionárias, autorizada pela Lei n° 11.105/2005, objetiva o enfrentamento e cura de patologias e traumatismos que severamente limitam, atormentam, infelicitam, desesperam e não raras vezes degradam a vida de expressivo contingente populacional (ilustrativamente, atrofias espinhais progressivas, distrofias musculares, a esclerose múltipla e a lateral amiotrófica, as neuropatias e as doenças do neurônio motor). A escolha feita pela Lei de Biossegurança não significou um desprezo ou desapreço pelo embrião "in vitro", porém u’a mais firme disposição para encurtar caminhos que possam levar à superação do infortúnio alheio. Isto no âmbito de um ordenamento constitucional que desde o seu preâmbulo qualifica "a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça" como valores supremos de uma sociedade mais que tudo "fraterna". O que já significa incorporar o advento do constitucionalismo fraternal às relações humanas, a traduzir verdadeira comunhão de vida ou vida social em clima de transbordante solidariedade em benefício da saúde”.

Na ADPF 132 (Rel. Min. Carlos Ayres Britto, julgamento em 05.05.2011), o STF reconheceu a proibição do preconceito como um capítulo do constitucionalismo fraternal “(…) a se viabilizar pela imperiosa adoção de políticas públicas afirmativas da fundamental igualdade civil-moral (mais do que simplesmente econômico-social) dos estratos sociais historicamente desfavorecidos e até vilipendiados (…) Isto de parelha com leis e políticas públicas de cerrado combate ao preconceito, a significar, em última análise, a plena aceitação e subseqüente experimentação do pluralismo sócio-político-cultural. Que é um dos explícitos valores do mesmo preâmbulo da nossa Constituição e um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (inciso V do art. 1º). Mais ainda, pluralismo que serve de elemento conceitual da própria democracia material ou de substância, desde que se inclua no conceito da democracia dita substancialista a respeitosa convivência dos contrários. Respeitosa convivência dos contrários que John Rawls interpreta como a superação de relações historicamente servis ou de verticalidade sem causa.”

Na análise da ADPF 186-MC, proposta contra atos administrativos da UnB que instituíram o programa de cotas raciais para ingresso na universidade, aplicou-se o princípio da fraternidade no seguinte sentido: “No limiar deste século XXI, liberdade e igualdade devem ser (re)pensadas segundo o valor fundamental da fraternidade. Com isso quero dizer que a fraternidade pode constituir a chave por meio da qual podemos abrir várias portas para a solução dos principais problemas hoje vividos pela humanidade em tema de liberdade e igualdade.”

A ministra Carmen Lucia também se postou nessa direção ao julgar a AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE proposta pela ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS EMPRESAS DE TRANSPORTE RODOVIÁRIO INTERMUNICIPAL, INTERESTADUAL E INTERNACIONAL DE PASSAGEIROS – ABRATI, na qual se controverteu sobre a CONSTITUCIONALIDADE DA LEI N. 8.899, DE 29 DE JUNHO DE 1994, QUE CONCEDE PASSE LIVRE ÀS PESSOAS PORTADORAS DE DEFICIÊNCIA.

Ali se fez ALEGAÇÃO DE AFRONTA AOS PRINCÍPIOS DA ORDEM ECONÔMICA, DA ISONOMIA, DA LIVRE INICIATIVA E DO DIREITO DE PROPRIEDADE, ALÉM DE AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DE FONTE DE CUSTEIO.

O resultado foi a IMPROCEDÊNCIA.

Assentou a eminente ministra e atual presidente do STF:

“(…)
Em 30.3.2007, o Brasil assinou, na sede das Organizações das Nações Unidas, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, bem como seu Protocolo Facultativo, comprometendo-se a implementar medidas para dar efetividade ao que foi ajustado.

A Lei n. 8.899/94 é parte das políticas públicas para inserir os portadores de necessidades especiais na sociedade e objetiva a igualdade de oportunidades e a humanização das relações sociais, em cumprimento aos fundamentos da República de cidadania e dignidade da pessoa humana, o que se concretiza pela definição de meios para que eles sejam alcançados.” (ADI 2649, Relator (a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 08/05/2008, DJe-197 DIVULG 16-10-2008 PUBLIC 17-10-2008 EMENT VOL-02337-01 PP-00029 RTJ VOL-00207-02 PP-00583 LEXSTF v. 30, n. 358, 2008, p. 34-63).

Nada obstante, enquanto a igualdade e a liberdade foram definitivamente traduzidas em dispositivos jurídicos, especialmente constitucionais, a fraternidade sempre teve e ainda tem dificuldade de se enraizar nos ordenamentos. Em alguns, como é o caso da Constituição brasileira, a fraternidade se confunde com solidariedade, exercida com substrato na imposição, pelo Estado, de alguma atuação por parte de determinados grupos. A inclusão de pessoas com deficiência é uma dessas formas; o mesmo se pode dizer da proteção ao meio ambiente.

Anote-se que a Campanha da Fraternidade de 2017 tem como tema ‘Fraternidade: biomas brasileiros e defesa da vida’ e o lema ‘Cultivar e guardar a criação’ (Gn 2.15). Segundo o bispo auxiliar de Brasília (DF) e secretário geral da CNBB, Dom Leonardo Steiner, a proposta é dar ênfase à diversidade de cada bioma e criar relações respeitosas com a vida e a cultura dos povos que neles habitam.
Independentemente da concepção cristã do princípio da fraternidade, há que se reconhecer nele a qualidade de lei maior de natureza ética, cujo fundamento de validade é o respeito à dignidade humana.

Nesse sentido, houve a sua inserção no preâmbulo da Constituição Federal como um dos valores fundamentais da República Federativa do Brasil, e, como se viu dos julgados acima mencionados, o STF já têm utilizado do constitucionalismo fraternal para justificar o respectivo ônus argumentativo na manutenção de ações positivas do Estado, tais como a criação do sistema de cotas, a obrigação de as escolas particulares matricularem alunos com deficiência, a manutenção de terras usualmente ocupadas por indígenas e remanescentes de comunidades quilombolas, assim como reconhecer direitos das minorias, como o reconhecimento do direito à união civil dos casais homoafetivos.
Na verdade, o que se vê na Constituição e nas legislações brasileiras que disciplinam ações afirmativas é uma derivação do princípio da fraternidade, a solidariedade, que com a primeira não se confunde, mas que é o cordão umbilical, a antessala do que se espera da atuação do Estado nesta seara.

O Direito Fraterno, conquanto já aplicado pelo Judiciário, como se vê das decisões do STF, no seu estado atual, não pode ser visto como um mero ponto de vista, nem mesmo como um parâmetro de abordagem de determinados temas especiais ou como mesmo uma metateoria. É prudente que se passe a tratá-lo como paradigma, um vetor hermenêutico de julgamento.

Aqui estamos hoje nesse princípio de abril de 2017. Olhando retrospectivamente, vemos que a fraternidade impôs alongar a viagem. Daí porque a memória histórica é importante para iluminar esse intenso presente.

Se a vida, a certa altura, escapa-nos (como me escreveu de Coimbra o professor Avelãs Nunes a propósito da perda de amigo em comum, em passado recente), ser fraterno transforma o tempo em existência infinita.  A alma de um ser fraterno viaja, ao partir, na forma de abraço e acolhimento.  Por isso, reverenciar a memória da dimensão humana de seres fraternos corresponde a desobedecer a lei injusta que intenta separar aqueles que se foram de todos os demais que restam. Desobedecer à lei da ausência total coloca-nos fraternos sob o legado de quem pranteamos. São créditos imateriais que depositamos em nossos corações.
Concluo estas palavras com a expressão do vendedor de pássaros construído por Mia Couto; há pessoas que são uma humanidade individual. Sintetizam, em si, luzes e também suas humanas sombras, mas não é pelo tamanho da sombra que se mede a essência da árvore.
O triunfo da razão, tomada como aquilo que existe independentemente da pessoa, não dá todas as respostas a essas luzes e sombras dos das correntes.

A hipertrofia da complexidade e a judicialização da vida pública e privada arrosta os modelos mentais pré-ordenados. E não me refiro apenas ao Brasil. Tome-se, como exemplo, julgamento havido na Alemanha, no qual o Tribunal Constitucional alemão concluiu que seria uma violação à Lei Fundamental de Bonn manter crucifixos em escolas públicas; a reação popular alemã foi imensa, especialmente na Bavária, chegando-se a falar em “enfraquecimento do Estado de direito e risco à própria República”. Esse fato expõe as dificuldades com a cultura, a tradição, bem como com o sentido do existir diferentemente.
Somos herdeiros do cienticismo copernicano cujas luzes da razão se projetaram para a juridicidade dos Códigos. Esse sistema de ideias e funções almejou sufragar a tese da indiferença moral do Direito, a pureza das normas, próprio dos juízos descritivos. Nada obstante, retomou-se a assertiva segundo a qual viver é interpretar, descobrir não apenas o direito do passado, mas os princípios do presente que, sob os diversos ônus argumentativos, melhor justificam a solução possível e adequada de controvérsias.  Essa escolha tem como limite a Constituição.

Para magistrados constitucionais, não apenas a impossibilidade de valer-se do non liquet complexifica seu modus operandi. A falta de hospitalidade fraterna ao diferente, ao respeito do que é diverso , se traduz também em desafio de inclusão, de ir ao encontro da existência do Outro, da inclusão do diferente.  Essa responsabilidade é a responsabilidade para com o Outro, uma relação fraterna de cuidado, uma permanente relação de doação, como escreveu Álvaro Ricardo de Souza Cruz ao expor o pensamento de Lévinas.

Mais que ler ou interpretar, viver a Constituição pode corresponder a um modo de vida qualificado pela obediência ao programa constitucional. Quando há tensão entre a regra e a vida, tencionam-se o fazer e o viver, emergindo do transcurso do tempo vivido conforme a Constituição uma hermenêutica ora confirmadora, ora retificadora, o que permite pensar, ao menos, na justiça como alguma virtude vivencial possível. Por definição, quanto maior a intensidade da redução da política como palco de soluções de conflitos maior será a captura pela sociedade contratual política da juridicidade, almejando encontrar nesta o lenitivo para as ações que não se viabilizaram no seu campo próprio.

Quiçá por isso mesmo o ousio e essa consciência profunda de que no sítio da liberdade e da democracia semeiam-se os próprios sonhos e também seus limites e frustrações. 

Soam mesmo bem-aventurados aqueles que, como o fez o Edésio que conheci no campo da fraternidade, arrostam os limites do possível. Como relembra Ricardo Lorenzetti, atual presidente da Suprema Corte de Justiça da Nação Argentina, ao citar Max Weber: “É totalmente verdade, e a história o prova, que neste mundo nunca é conseguido o possível se você não tentar o impossível uma e outra vez”.

Vive-se, pois, a vida como esse extenso nascimento. Cultivam-se nela possibilidades, responsabilidades, paradoxos e esperanças que se vertem do leiaute dos seres viventes.  São aqueles que, sem se penumbrarem, sem sucumbir à guerra entre evidência e semântica, intentam cumprir a vida, com liberdade, democracia e fraternidade. E, ao fazê-lo, se integram na justa homenagem de quem, como Edésio, sem favor algum, cumpriu a vida."

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Accessibility Menu
Digital Accessibility by \ versão