Era um dia ensolarado de verão, mas o Jornal do Brasil – então o principal diário brasileiro – em uma nota meteorológica em sua capa afirmava que nuvens negras cobriam os céus do Brasil. Era 14 de dezembro de 1968 e no dia anterior o presidente marechal Costa e Silva havia assinado o Ato Institucional número 5, que decretava o golpe dentro do golpe. O país, que desde 64 já vivia na ilegalidade, cobriu-se de sombras. Começava o período que passou para a história como os Anos de Chumbo.
O pretexto para o AI-5 foi um discurso proferido três meses antes por um jovem deputado do MDB na Câmara dos Deputados. Marcio Moreira Alves havia conclamado o povo brasileiro a não participar dos desfiles militares de 7 de setembro e as moças a se recusarem a sair com oficiais. As Forças Armadas consideraram-no uma provocação inaceitável e o Governo pediu ao Congresso que o cassasse.
No dia 12 de dezembro, por uma diferença de 75 votos e com a participação de setores da própria Arena – o partido do governo –, a Câmara recusou o pedido de licença para que o deputado fosse processado e cassado. Foi a gota d’água. Desde junho os quartéis davam sinais de uma disposição sem limites para a radicalização. Havia acontecido a Passeata dos Cem Mil no Rio de Janeiro, organizada pelo movimento estudantil e a participação em massa da população, artistas e intelectuais. Em outubro a UNE – União Nacional dos Estudantes – na ilegalidade – havia tentado realizar o seu 30.º Congresso em Ibiúna com 700 estudantes. Todos haviam sido presos.
Em 1968 – um ano que se tornou emblemático em todo o mundo como um momento de contestação das velhas tradições políticas e de costumes – a sociedade brasileira estava cansada do regime ditatorial. A Igreja se manifestava em defesa dos Direitos Humanos. As maiores lideranças políticas articulavam-se no exterior para retornar ao país e assumir abertamente a luta pela democracia. Entre eles estava Carlos Lacerda – um articulador do próprio golpe e que havia sido atingido pela criatura que ajudara a criar, Juscelino Kubitschek e João Goulart.
No dia 13 os quartéis amanheceram de prontidão. O marechal Costa e Silva a portas fechadas com os três ministros militares – general Lira Tavares, do Exército; almirante Augusto Rademaker, da Marinha e o brigadeiro Marcio de Souza Mello, da Aeronáutica – e o ministro da Justiça, Gama e Silva decidiu baixar o Ato Institucional 5. Com a aprovação dos ministros civis e do Conselho de Segurança Nacional o Ato foi anunciado às 23 horas.
O AI 5 fechou o Congresso Nacional por tempo indeterminado. Decretou o recesso dos mandatos de senadores, deputados e vereadores. Autorizou a intervenção nos Estados e Municípios. Cassou mandatos. Permitiu a suspensão dos direitos políticos de qualquer cidadão por 10 anos. Legalizou o decreto-lei. Deu poderes ao presidente da República para decretar o Estado de Sítio e prorrogar o seu prazo. Proibiu qualquer reunião de cunho político. Estabeleceu a censura prévia aos meios de comunicação e à produção cultural e artística. Suspendeu o hábeas corpus aos chamados crimes políticos.
Difícil admitir que em algum tempo da história nacional o país possa ter convivido com a suspensão do hábeas corpus – uma das mais emblemáticas medidas judiciais para salvaguardar a liberdade humana. Um trauma do qual o Direito e a Justiça brasileiros ainda levarão algum tempo para se curar.
Foram dez anos até o AI 5 ser revogado. E mais dez anos para a promulgação da Constituição Federal de 1988, que está exatamente a meio caminho entre o fatídico dezembro de 1968 e o dia de hoje. A história de um país sob um regime de exceção deixa marcas e lições importantes no cenário jurídico. No Brasil, essa experiência resultou numa Constituição que cria direitos que se constituem em cláusulas pétreas. Que reafirma garantias do Judiciário capazes de impedir que se repita a afronta propiciada pelo AI 5, que afastou da Suprema Corte Brasileira cinco de seus ministros porque exerciam suas obrigações com altivez e independência.
O ano de 68 ensinou o que é fundamental para o Brasil: uma Justiça independente e direitos fundamentais livres do arbítrio dos governantes. Seguindo esses princípios, a Constituição Federal deve manter a sociedade brasileira preservada de ataques como os que enfrentamos há 40 anos.
Todos esses acontecimentos fazem parte da história. Mas uma história que em vários aspectos, assim como o ano de 1968, ainda não terminou. E a história não está aí apenas para servir de reminiscências. É preciso conhecê-la para melhor prosseguir. É cobrando o que fomos que nós iremos crescer como bem diz o músico e poeta mineiro Fernando Brandt.
Alberto de Paula Machado
Presidente da OAB Paraná