Os debates realizados no evento “Implicações práticas da redução da maioridade penal na esfera jurídica”, promovido pela Comissão da Criança e do Adolescente da OAB Paraná, na noite do último dia 12 de junho, resultaram em uma carta aberta enviada aos deputados federais e senadores com considerações sobre a PEC nº 171-A, que reduz a maioridade penal. Confira a íntegra
A carta aberta é assinada pela OAB Paraná, pelo Ministério Público do Paraná (MP-PR) e pela Defensoria Pública do Paraná (DP-PR). Durante o evento que contou com participação da presidente da Comissão da Seccional, Maria Christina dos Santos; da presidente da Comissão de Advocacia Criminal, Priscilla Placha Sá, do jurista Ricardo Calderón, da advogada Marta Tonin, ainda foram registradas as presenças do desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), Ruy Muggiati, presidente do Conselho de Supervisão das Varas a Infância e Juventude (CONSIJ-TJ); do desembargador do TJ-PR, Noeval Quadros; do procurador de Justiça Olympio de Sá Sotto Maior Neto, coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Proteção aos Direitos Humanos do MP-PR; do procurador Luiz Celso Medeiros, vice-presidente da Associação Paranaense do Ministério Público; de Renan Ferreira, representando o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA); da promotora de Justiça Daniele Tuoto, representando o CEDCA; de Pedro Ribeiro Giamberardino, diretor do Departamento de Atendimento Socioeducativo do Estado do Paraná da Secretaria de Justiça (SEJU); de Claudia Regina Estorilio, gerente de medidas socioeducativas da Fundaçao de Ação Social de Curitiba além de representantes da Frente Paraná contra a Redução da Maioridade Penal e público interessado.
Carta aberta aos Senhores Deputados Federais e Senadores da República subscrita pelas seguintes pessoas: Dr. Juliano Breda (Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Paraná); Dr. Gilberto Giacóia (Procurador Geral de Justiça do Paraná) e Dra. Josiane Fruet Bettini Lupion (Defensora Pública-Geral do Paraná), referente Proposta de Emenda à Constituição nº 171-A, de 1993, do Sr. Benedito Domingos e outros, que altera a redação do artigo 228 da Constituição Federal, reduzindo a maioridade penal para dezesseis anos.
Senhores Parlamentares,
Considerando que a redução da maioridade penal não diminuirá a violência no país e a Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) já prevê a responsabilização do adolescente a partir de 12 anos de idade, abrangendo, inclusive, os crimes cometidos mediante grave ameaça ou violência aos quais a medida competente é a privação da liberdade até 3 (três) anos, observando-se que o(a) adolescente deverá ser internado(a) em Unidade que preveja atendimento socioeducativo (separado dos maiores de 18 anos), cuja implementação é de total responsabilidade dos governos estaduais, que deverão garantir as políticas públicas necessárias para efetivar, basicamente, os direitos fundamentais da saúde, educação, profissionalização, segurança, esporte, cultura e lazer;
Considerando que o sistema prisional brasileiro não é modelo de ressocialização, segregando condenados em número assustador, em prisões superlotadas, sendo que o Brasil é o 4º país com a maior população carcerária do mundo em números absolutos e o 5º país com a maior população carcerária em números proporcionais atingindo a cifra de 358 presos por 100 mil habitantes em 2014; que estes dados não incluem os adolescentes privados de liberdade e que segundo dados do “Novo Diagnóstico de Pessoas Presas no Brasil”, do Conselho Nacional de Justiça, a Nação possui, aproximadamente, 560.000 presos, com déficit de 206 mil vagas, sendo que o referido déficit deve ser contemporizado com outros 500.000 mandados de prisão em aberto e, aproximadamente, 150 mil prisões domiciliares;
Considerando o caos da gestão prisional brasileira; o contexto da superlotação carcerária e as grandes dificuldades técnicas para solução do problema (segundo a Exposição de Motivos elaborada pela Comissão de Juristas responsável pelo PLS nº 513/2013, que propõe a atualização da Lei de Execução Penal, estima-se que para solucionar a falta de vagas no país seria necessário o investimento de mais de 7 bilhões para zerar a superlotação. O referido cálculo não considera o tempo de construção de novas obras e a curva acelerada de crescimento da população carcerária que aumentou 240% entre 2001 e 2014 segundo o InfoPen/Ministério da Justiça), bem como o fato de que a geração de vaga no sistema carcerário representa o custo médio de 2 mil reais ao mês por preso para sua respectiva custódia, o que, se mantida a população carcerária atual, já representa mais de 13 bilhões ao ano para manutenção dos presos (sem considerar outros custos agregados à repressão criminal);
Considerando que além do investimento público sobrevém a absoluta impossibilidade de separação de presos conforme o perfil e a extrema dificuldade de controle sobre as situações que, diferentemente da realidade das Unidades Socioeducativas, ocorrem no interior de 1diferentes estabelecimentos penais do país: domínio de facções criminosas em diferentes graus de organização, comercialização de produtos lícitos e ilícitos no interior dos estabelecimentos penais, troca de favores e cumplicidades, entre outras práticas que fortalecem a notória percepção de diversos conhecedores da realidade prisional com profundo ceticismo quanto à medida adotada;
Considerando que a análise das estatísticas criminais denota que não existe correlação entre o aumento do número de prisões com a redução da violência ou criminalidade, o que faz aumentar ainda mais o questionamento sobre a estratégia de investimento de recursos públicos verticalizados na repressão adotada no país. No próprio Estado do Paraná, que foi um dos quatro Estados brasileiros que reduziram a população carcerária entre 2011 e 2014, houve, concomitantemente, sensível diminuição do número de crimes letais e violentos no Estado segundo Anuário de Segurança Pública;
Considerando que educar é melhor e mais eficiente do que punir e que a Câmara dos Deputados, pela Resolução nº 21, de 23 de junho de 1976, por seu então Presidente, Célio Borja, aprovou o Relatório e as Conclusões da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar o “Problema da Criança e do Menor carentes do Brasil”, acentuando, já naquela época, que “A miséria, portanto, é a origem de todos os males e a causa mediata ou imediata da delinqüência infanto-juvenil”. Quanto à Educação, o Relatório dava conta de que todos os depoentes que abordaram o este tema foram unânimes em afirmar que “este é o maior problema do Brasil e o meio mais eficiente de recuperação e promoção social do menor.” O Professor Osvaldo Sangiorgi (…) cita excerto de obra de Rui Barbosa alertando a Nação para o grave problema, que à época, já o preocupava: “A nosso ver, a chave misteriosa das desgraças que nos afligem é só esta: a ignorância popular, mãe da servilidade e da miséria.
Eis a grande ameaça contra a existência constitucional e livre da Nação. Eis o formidável inimigo e destino que se asila nas entranhas do País. Para o vencer, releva instaurarmos o grande serviço da defesa nacional contra a ignorância, serviço a cuja frente incumbe ao Parlamento a missão de colocar-se, impondo, intransigentemente, à tibieza dos nossos Governos, o cumprimento do seu supremo dever para com a Pátria.” E o Relatório daquela CPI ainda diz: “Ainda hoje, podemos afirmar que a inteligência – talvez o bem mais precioso a serviço da espécie humana – está sendo subutilizada em todo o mundo, máxime no Brasil”.
(In: A realidade brasileira do menor: relatório. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 1976, pp. 33 e 39);
Considerando que a fixação da maioridade penal em 18 anos é tendência mundial, ou seja, de uma lista de 53 países pesquisados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), 42 deles (79%) adotam a maioridade penal aos 18 anos ou mais: dentro deste contexto e diante do clamor público sobre atos isolados de violência praticados por adolescentes surge outra proposta de alteração e inovação no ordenamento jurídico: transpor uma parcela dos atuais adolescentes privados de liberdade no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) – regido pela Lei n. 12.594/2012, – para que sejam privados de liberdade no sistema penal adulto regido pela Lei n. 7.210/1984 (Lei de Execução Penal). Note-se que não se debate a qualidade ou a forma do atendimento socioeducativo ou do tratamento penal, mas propõe-se que parcela deste público passe a ser gerido por um sistema em vez do outro.
Insta registrar que os dados que fundamentam a proposta de alteração não condizem com a realidade. Segundo dados do Sistema Socioeducativo do Estado do Paraná, que se responsabiliza pela custódia dos atos mais graves praticados por adolescentes no Estado – relativos àqueles mantidos em privação ou restrição de liberdade – 42% dos apreendidos cometeram atos infracionais contra o patrimônio (furto, roubo, receptação); 18% envolvidos com o tráfico de drogas, o que totaliza 60% da população daqueles que cumprem medida socioeducativa. Destarte, dentre os atos de maior gravidade, 3,6% dos adolescentes estão apreendidos por latrocínio; 14,9% por homicídio e 1,9% por estupro. Ou seja, os dados que reiteradamente assombram a mídia impressa e televisiva e que tem justificado a proposta de alteração na lei não condizem com a prática de mais de 78% da população atualmente apreendida no Sistema Socioeducativo no Paraná. Na verdade, eles são mais vítimas que autores de condutas graves. Basta ver as estatísticas da Vara de Adolescentes em Conflito com a Lei da Comarca de Curitiba/PR, com relação às mortes violentas de adolescentes e jovens (12 a 21 anos) em Curitiba e Região Metropolitana nos últimos 3 (três) anos:
Frise-se que em razão de um grau de menor comprometimento com facções criminosas ou com organizações locais de crimes obtém-se, no Sistema Socioeducativo, índices significativamente superiores de reinserção social e ruptura com o histórico infracional. Hoje, o índice de reinternação de adolescentes no Paraná é de 18%, ao passo que no Sistema Penitenciário a reentrada soma mais de 70%. O número de adolescentes, de modo mais proporcional à demanda de atendimento – o que também destoa do ambiente prisional – consiste em mecanismo que permite o gerenciamento, de forma mais adequada, de escolarização, qualificação profissional, atendimento de equipe multidisciplinar, iniciativas voltadas à manutenção ou fortalecimento do vínculo familiar e outros projetos de reinserção.
Por outro lado, mesmo em relação aos adolescentes que não cometem ato infracional, haveria cenário de significativo prejuízo com a alteração legislativa. Isso porque a proposta traria para o país alterações preocupantes ao acentuar diversos fatores de risco, aumentando, significativamente, a vulnerabilidade desta faixa etária. Isso porque, com a redução da maioridade penal – enquanto esfera mais sensível segundo o ordenamento jurídico apto a respaldá-la como ultima ratio do Direito – haveria, como conseqüência, a legalização, em parte, da prostituição infantil, da pornografia e a facilitação do comércio de álcool, tabaco e locais controlados ao público adulto. Frise-se que a lei penal, ensejadora de garantias muito mais robustas por envolver a privação de liberdade – liberdade enquanto um dos mais caros fundamentos da dignidade humana -, poderia ser ampliada para idade superior sem alterar a idade mínima para outros direitos civis (18 anos), todavia, se reduzida (de 18 para 16), não abrangerá a responsabilização civil (18 anos) para todos os atos praticados (ex.: a redução permitirá aos adolescentes dirigir com 16 anos. Contudo, não responderão civilmente a partir de 16 anos!). E todas essas questões de risco aos adolescentes, atualmente amparados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, viriam a ocorrer pela alteração do texto constitucional.
Diante do exposto, faz-se imprescindível que propostas de Emendas Constitucionais como a PEC 171/1993: (a) reflitam sobre o modelo de atendimento socioeducativo já existente e que prevê a responsabilização por ato infracional a partir dos 12 anos de idade, prevendo verbas prioritárias para a política da criança e do adolescente, tal como já existe com setores sensíveis como educação e saúde; (b) respeitem a Lei de Responsabilidade Fiscal e elaborem estudo técnico de impacto orçamentário e financeiro aos Estados quanto à proposta de construção de estabelecimentos para público entre 16 e 18 anos, que atualmente já podem ser privados de liberdade em Unidades Socioeducativas; (c) constituam comissão do Poder Legislativo para conhecer as diferentes Unidades Socioeducativas do país para subsidiar propostas de alterações sobre o modelo de funcionamento, respeitada a competência dos órgãos próprios, ressaltando-se a importância normativa e deliberativa do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA.
Neste particular, faz-se menção à Inspeção Nacional às unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei, relevante parceria entre Conselho Federal de Psicologia (CFP) e Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), que resultou nas Inspeções de Direitos Humanos, tratando-se de visitas realizadas simultaneamente em 22 estados brasileiros e no Distrito Federal, no dia 15 de março de 2006, com o objetivo de avaliar os níveis de efetivação dos direitos assegurados aos jovens privados de liberdade, denunciar as violações, suscitar o debate e propor ações. Na “apresentação” do Relatório resultante da citada Inspeção, Flávio Américo Frasseto, Defensor Público em São Paulo, assim se referiu: “A pretensão de se tornar eficazmente educativa a lição ministrada por detrás das grades é pretensiosa, já que, bem nos lembra Ferrajoli, repressão e educação são definitivamente incompatíveis, como são a privação de liberdade e a liberdade mesma, que constitui a substância e o pressuposto da educação, de maneira que a única coisa que se pode pretender do cárcere é que seja o menos repressivo possível e, por conseguinte, o menos dessocializador e deseducador possível.” (In: Direitos Humanos: um retrato das unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei. Brasília: CFP e CFOAB, 2006, p. 11).
Não é por outra razão que a primeira, dentre as perspectivas fundamentais das Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade, vem assim traduzida: “O sistema de justiça da infância e da juventude deverá respeitar os direitos e a segurança dos jovens e fomentar seu bem-estar físico e mental”.
Por fim, o Ministro José Celso de Mello Filho, do Supremo Tribunal Federal, disse: “Não é necessário reduzir a maioridade penal para resolver os problemas derivados da criminalidade juvenil. É necessário, sim, reduzir e suprimir, de vez, as condições socialmente degradantes e economicamente opressivas que expõem enormes contingentes de crianças e de adolescentes, em nosso País, à situação de injusta marginalidade social.” (In: Adolescência, Ato Infracional e Cidadania: a resposta está no E.C.A. Basta querer realizar. Brasília: ABONG e Fórum DCA Nacional, 1999).
Curitiba (PR), 23/06/2015. (39º ano da “CPI do Menor”, da Câmara dos Deputados).


