“Sem advocacia e judiciário, a democracia perecerá”, afirma Fachin na Conferência da OAB

Foto: Alessandro Carvalho

O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), afirmou nesta segunda-feira (27/11) que, sem uma advocacia intimorata e um Judiciário independente, a democracia perecerá. A afirmação foi dada durante o painel “Os 35 anos da Constituição – Maturidade Democrática”, na 24ª Conferência Nacional da Advocacia Brasileira, em Belo Horizonte (MG). 

“É imprescindível garantir pleno respeito às prerrogativas da advocacia. É imprescindível assegurar respeito às garantias do devido processo legal e da ampla defesa. É tempo da democracia defensiva. Esperança se tornou sinônimo de vigília e alerta. Não nos olvidemos: a democracia é condição de possibilidade para a defesa das liberdades”, afirmou. 

Fachin disse ainda que a Constituição brasileira vive um paradoxo: de um lado, caminha em direção à sua maturidade; de outro, passa a viver uma hora das mais difíceis. “É certo que tem garantido estabilidade democrática e econômica, inclusão social e direitos fundamentais de populações vulneráveis. Induvidoso também que esses são feitos substantivos, considerando-se que coube à Constituição de 1988 não a missão de aperfeiçoar uma democracia, mas sim a de redundá-la”, ressaltou. 

O ministro também reforçou que “a defesa da Constituição, da própria legalidade democrática e do Estado de Direito fazem um chamamento a todas as vocações em memória dos constituintes de 88 e pelas gerações do futuro”. 

“Se hoje ainda se pode celebrar um percurso resiliente e resistente, quiçá amanhã reste óbvio o que se vê obnubilado: a democracia, que ainda se encontra numa sala de emergência, voltará a respirar por aparelhos. Que a almejada sociedade livre, justa e solidária, como prevê a Constituição, seja a pedagogia que possa guiar mentes e corações nos tempos a viver. O futuro será testemunha”, complementou o ministro do STF. 

Além do ministro Fachin, também participou do painel o ministro do STF Dias Toffoli; a ex-advogada-geral da União Grace Mendonça; o vice-presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais, Manoel Carlos Neto; o membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais Ruy Samuel Espíndola; e o procurador-geral de Justiça de Minas Gerais, Jarbas Soares Júnior. O membro honorário vitalício do CFOAB e presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, conduziu a mesa. O conselheiro federal de São Paulo e procurador constitucional adjunto Helio Rubens Batista Ribeiro Costa foi o relator, e a conselheira federal do Espírito Santo Luciana Mattar Vilela Nemer, secretária.

Veja abaixo a íntegra do discurso de Edson Fachin no painel:

Vive a Constituição Federal brasileira um paradoxo: de um lado, caminha em direção à sua maturidade; de outro, passa a viver uma hora das mais difíceis.

É certo que tem garantido estabilidade democrática e econômica, inclusão social e direitos fundamentais de populações vulneráveis. Induvidoso também que esses são feitos substantivos, considerando-se que coube à Constituição de 1988 não a missão de aperfeiçoar uma democracia, mas sim a de redundá-la.

Nada obstante, há uma inequívoca diluição da autoridade da Constituição e do próprio Direito, quer por tentativas de golpe contra a Constituição e os poderes constituídos, quer por reformas que fazem apologia do pretérito como idade de ouro. Ao lado disso, há aberta perda do tônus legislativo, ora com inércia, ora com interesses legiferantes preordenados, ao lado de criticável oscilação jurisprudencial com carências de previsibilidade, estabilidade e segurança jurídica.

Em 35 anos, provou-se ser verdadeira a oração de Ulysses Guimarães: “a persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia”.

De fato, a Constituição de 1988 prevê garantias e remédios para a efetivação de direitos e, ainda, tem provado possuir as qualidades de resiliência e altivez outrora sonhadas para ela. Não faltam à nossa Carta firmeza e adaptabilidade, as quais têm se manifestado mesmo diante de graves ameaças. O projeto social emancipatório que consiste na espinha dorsal constituinte conta com o anteparo de um engenhoso mecanismo de freios e contrapesos e se reafirma por meio de instituições desenhadas para exercer tais competências de modo brioso.

Com uma Constituição vocal no reconhecimento de direitos e uma jurisdição constitucional singular, o Brasil logrou alcançar notáveis mudanças estruturais e institucionais nas últimas décadas.

Sem colocar tintas novas em paredes velhas, a Constituição possibilitou o surgimento de outras epistemes, ensejando uma compreensão do direito constitucional que podemos tomar como escrita “a contrapelo”.

Há, sim, conquistas a celebrar: na declaração constante dos direitos sociais como condição de exercício de liberdades individuais; garantia de direitos de populações indígenas e quilombolas; na afirmação dos direitos dos trabalhadores; na construção de sistemas econômicos e produtivos cujos laços sejam solidários; nas políticas de equidade; na defesa de direitos da população encarcerada.

Trata-se, pois, do despertar de uma constitucionalidade dialética e crítica à racionalidade instrumental contemporânea, pois a catástrofe do fim da democracia pode emergir da combinação insensível entre “progresso técnico e regressão social”.

Contudo, como alertara Guimarães Rosa, “quem elege a busca, não pode recusar a travessia”. Não será sem fluxos e contrafluxos, sem avanços e resistências, a estrada da vida em Constituição e com a Constituição. Por isso, essa ocasião é, tanto mais, a de celebração das experiências ricas nas quais a realidade da vida tem se amalgamado à normatividade da Constituição, conferindo-lhe sentido. Porém, o que nos aguarda pode não ser um futuro saudável do ponto de vista constitucional.

Houve, sim, processo de decantação e sedimentação constitucional. A maturidade do documento tem decorrido de movimentações sincopadas entre as noções de força e de resiliência, as quais se dão em concreto, no canteiro de obras da democracia.

Já se disse, com acerto, que a característica mais relevante dessa Constituição talvez seja o ousio de abrigar interesses, direitos e metas ambiciosas para a sociedade, um verdadeiro “compromisso maximizador”. Essas promessas se combinam com uma “rigidez complacente”, facilitadora da constante atualização do nosso projeto de país.

A Constituição tem garantido uma sábia alternância entre o gradualismo de certas mudanças e a ousadia nos novos sentidos e direitos que estabeleceu em favor de grupos ‘minorizados’, emponderando-lhes como partícipes do projeto de interpretação constitucional.

Em 1988, na Assembleia constituinte, contatou-se que o Brasil era um país que ainda contava com 30 milhões de pessoas analfabetas e mais de 7 milhões de crianças fora das escolas. Acerca das populações indígenas, emergiu o dever constitucional de “resgatar a dívida da sociedade brasileira com as comunidades indígenas”.

Houve baixa participação das mulheres na Constituinte, contando-se com apenas 26 representantes, que, de forma corajosa, nada obstante, articularam-se com a sociedade civil e a academia para produzir conquistas marcantes. A “Bancada” nos legou a vedação à desigualdade salarial, o estabelecimento de direitos às empregadas domésticas, a proibição do uso de violência em relações intrafamiliares, consoante expressa o art. 226 da Carta.

Os negros e negras também participaram da discussão acerca da Carta que passaria a reger a comunidade política, firmando um pacto por equidade e justiça racial, e ali se propôs a criminalização do racismo, qualificado como delito inafiançável; se defendeu a liberdade de cultos religiosos, bem assim a garantia de propriedade de terras às comunidades remanescentes de quilombos, dentre outras medidas.

No campo dos direitos sociais, a Constituição brasileira foi generosa e buscou reparar injustiças. Instituiu uma previdência social e um Sistema Único de Saúde sem paralelos no mundo. Tratou ainda das relações trabalhistas, ampliando o arcabouço de direitos erigido ao início do Século 20, no âmbito da Consolidação da Leis do Trabalho.

Em alguma medida, anteviu a necessidade de fortalecimento da mediação entre capital e trabalho, como pilar da noção de social-democracia. Robusteceu esse arranjo de equilíbrio de forças, de modo a que a Constituição possa seguir sendo invocada e efetivada em momento global no qual grassam a precarização das relações de trabalho.

Como se pode depreender, em seu nascedouro, a Constituição não encontrou o melhor estado de coisas, mas arrostou essas lutas sem esmorecer. Evidenciou-se que o desenho deliberativo do processo constituinte, com predominância de importantes subcomissões, alavancou temas de direitos humanos a patamares que não se supunha possíveis em uma sociedade recém-saída de um período autoritário.

À míngua da existência de capacidades institucionais para a implementação desse programa de amplificação de direitos, a Carta de 1988 previu uma cláusula de acesso à justiça sem barreiras temáticas, de modo que nenhuma lesão ou ameaça de lesão possa ser excluída da apreciação por parte do Poder Judiciário.

Assim é que, poucos anos após a promulgação da Constituição, houve um aumento exponencial no ajuizamento de ações judiciais. Por exemplo, entre 1990 e 2002, houve um aumento de 270% do número de processos que ingressaram no Poder Judiciário.

O aspecto simbólico desse aumento refere-se à construção de um discurso de direitos e de cidadania, ao passo em que, no âmbito concreto, assistiu-se a uma pressão sobre o Estado para o cumprimento das promessas constitucionais. Pairando acima das discussões teóricas sobre ativismo judicial, o clamor por direitos e a letra da Constituição trouxeram o Judiciário brasileiro para a arena da vida em concreto.

A nossa alargada compreensão acerca do acesso à justiça fez com que a Justiça participasse da articulação da política pública de dispensação de medicamentos de HIV/AIDS ao início da década de 1990, conformando um paradigma mundial de intervenção judicial positiva. A nova Constituição maximizou o acesso à justiça também por meio da criação de Juizados de pequenas causas, pela institucionalização das carreiras públicas, fortalecendo mecanismos de tutela de direitos difusos e do controle de constitucionalidade, para ficar em alguns exemplos.

Contemporaneamente, questões afetas à temática de direitos humanos encontram caminho célere para chegar ao Supremo Tribunal Federal, mitigando a problemática do direcionamento da jurisdição constitucional brasileira a demandas corporativas ou supostamente elitistas. O controle de constitucionalidade mostra-se, cada vez mais, acessível, democrático e plural.

De outra parte, a cláusula antidiscriminatória do art. 3º, inciso IV, da Constituição, segundo a qual se deve promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, desdobrou-se numa sólida jurisprudência do Supremo Tribunal Federal afirmativa da equidade de gênero e da erradicação de desigualdades regionais em múltiplas dimensões.

A nossa Corte Constitucional chancelou a política de ações afirmativas voltada a fomentar o ingresso em nossas universidades públicas.

No campo dos direitos das mulheres, o STF reforçou a aplicação da Lei Maria da Penha. Decidiu ainda que o tempo menor de contribuição das mulheres não pode ser usado para diminuir a concessão do benefício em planos de complementação de aposentadoria, por não se admitir uma violação ao princípio da isonomia. A Corte baniu a tese da legítima defesa da honra para atenuar crimes de feminicídio, no bojo da ADPF 779. Firmou-se a possibilidade de substituição de prisão preventiva por domiciliar para mulheres gestantes ou mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência.

Tivemos ainda julgamentos importantes sobre a cota de gênero para acesso aos recursos do fundo partidário e, por último, mas não menos importante, o Plenário do STF declarou inconstitucionais trechos de dispositivos da Reforma Trabalhista que admitiam a possibilidade de trabalhadoras grávidas e lactantes desempenharem atividades insalubres.

Portanto, a considerar esses avanços, 35 anos depois, a Constituição nos apresenta um país ainda marcado por desigualdades, contradições e desafios, mas muito melhor do que ela encontrou. Ela universalizou direitos, estabilizou a economia, revigorou as esperanças e certezas de estar sendo alicerçada uma sociedade livre, justa e solidária.

A Constituição rompeu com lógicas excludentes que sobrepunham as camadas de proteção social, favorecendo apenas os trabalhadores formais. Uma enorme franja de excluídos passou a contar com benefícios e mecanismos de transferência de renda que antes lhes eram negados.

Buscando instaurar um estado de efetivo bem-estar, a nossa Carta de 1988 rompeu com lógicas de estratificação social, de corporativismo, de hierarquias raciais e sociais. Acenou para aqueles que vinham sendo invisibilizados. Para reescrever as narrativas da nossa história constitucional, atentou para as “pedras miúdas”, para as pessoas talvez esquecidas, para os relatos das ruas, conforme expressões do historiador Luiz Antonio Simas.

Na sua trajetória até aqui, portanto, a Constituição postou-se numa temporalidade porosa entre passado, presente e futuro. Ela nos fez caminhantes sem caminho definido, nos situou como aqueles que fazem o caminho ao caminhar, conforme descreve o poema do espanhol Antonio Machado. Não precisamos mais ser calados na necessária “vontade de constituição” de Konrad Hesse.

E, não se pode deixar de lembrar, que, para além do seu papel de garantidora de direitos, a Constituição Federal demonstrou resistência aos ataques sofridos pela democracia brasileira. Combinando resiliência, enquanto adaptabilidade, e resistência, que significa uma força que se opõe à outra, a Carta não se curvou a movimentos populistas e autoritários, à circulação de desinformação, aos ataques violentos contra o Estado Democrático de Direito, por nós testemunhados com mais agudo assombro no dia 8 de janeiro do presente ano.

Amarrada à Constituição e à institucionalidade, qual Ulisses de Homero, a Justiça não se abalou com golpes e intimidações. Abriu os ouvidos apenas à Constituição e às suas cláusulas pétreas democráticas, como bem pontuou metaforicamente o filósofo norueguês Jon Elster. A Constituição nos fez surdos a arroubos truculentos e violentos e, com ela, detemos processos de erosão dos valores democráticos.

A democracia seguirá sendo uma obra que se constrói coletivamente, a muitas mãos, a partir da pluralidade de visões, da convivência harmônica entre diferentes, da circulação de informações de qualidade e da defesa intransigente do Estado democrático de Direito.

Assim, o aniversário da Constituição Federal, nesse especial marco da sua trilha de maturidade, é uma data de reavivamento dos compromissos democráticos e fraternos de um país que, com a sua Carta, tem se vocacionado a utilizar a ferramenta do constitucionalismo como feixe de luz de transformação da realidade.

Sem embargo, impende registrar, hoje, o que o Juiz Oliver Wendell Holmes da Suprema Corte norte-americana lembrou, certa feita, que, assim como a vida, a Constituição é uma experiência. Celebremos o nosso experimento de justiça em concreto, a força das pequenas grandes histórias em que a Carta se posicionou a serviço da afirmação de direitos daqueles que, antes dela, estavam em situação de sub-cidadania e privados de quase tudo. Quanto mais olharmos e estivermos sensíveis às demandas e conquistas dos Joãos, Marias e Josés que estão por trás dos autos judiciais, mais veremos quão bela jornada tem sido a nossa sob a égide da Carta de 1988.

Ao olhar, todavia, ao futuro que se apresenta, se apresenta inconfundível titubeio da matéria-primeira da ordem jurídico, somando aos desafios de um mundo de mudanças constantes e da incapacidade das respostas pelas fórmulas normativas.

A senha da largada parece ter sido dada: derruir a Constituição principia com a diluição de seus poderes, nomeadamente do Poder Judiciário, das garantias das funções essenciais à justiça, da advocacia e das prerrogativas da magistratura; avança esse caminho por sobre o texto, mutilando-o, superlativando problemas da segurança jurídica formal, iniciando-se evidente processo de nítida função supressiva de atribuições.

Haverá limites nessa escalada? Inexistem respostas prontas. O certo é que a hermenêutica constitucional, já desafiada nestes tempos recentes, poderá, em futuro próximo, não dar conta de manter as bases da guarda do Estado de Direito democrático inscrito na Constituição. A lealdade à Constituição está em causa quando em causa estiver a independência dos Poderes.

Sem advocacia intimorata, a democracia perecerá.

Sem Judiciário independente, a democracia perecerá.

É imprescindível garantir pleno respeito às prerrogativas da advocacia. É imprescindível assegurar respeito às garantias do devido processo legal e da ampla defesa.

É tempo da democracia defensiva. Esperança se tornou sinônimo de vigília e alerta. Não nos olvidemos: a democracia é condição de possibilidade para a defesa das liberdades.

Oportunismos conjunturais e arroubos autoritários começaram a escrever um manual de demolição das bases das funções essenciais à justiça. O primeiro capítulo já veio a lume. Em seguida, avançarão sobre os territórios das garantias da magistratura; depois, atacarão a autonomia financeira do Poder Judiciário;  ato contínuo, investirão contra mecanismos de acesso à justiça; depois, se voltarão ao mitigar da paridade de armas, cláusulas inderrogáveis especialmente para a advocacia das liberdades.

Conhecemos das experiências autoritárias, aqui e alhures, o destino a que se conduzem. A última fronteira é agredir a garantia constitucional do habeas corpus.

Não permitamos. É hora da cidadania brasileira, antes que seja tarde, elevar-se para defender permanentemente o Estado de Direito democrático.

Reitero também: a questão é cuidar da casa comum. A casa comum, advertiu o Papa Francisco na encíclica Laudato Sì, de 2015, impõe cuidado, respeito, tolerância ao Outro, ao diferente, aos seres sencientes, às futuras gerações, à natureza.

O Direito, as funções essenciais à justiça, e todas as instituições do sistema de justiça desempenham, no enfrentamento destes desafios, função de garantir confiança e segurança.

A defesa da Constituição, da própria legalidade democrática e do Estado de Direito fazem um chamamento a todas as vocações em memória dos constituintes de 88 e pelas gerações do futuro. Impende manter o estado permanente de vigília democrática.

Se hoje ainda se pode celebrar um percurso resiliente e resistente, quiçá amanhã reste óbvio o que se vê obnubilado: a democracia, que ainda se encontra numa sala de emergência, voltará a respirar por aparelhos.

Que a almejada sociedade livre, justa e solidária, como prevê a Constituição, seja a pedagogia que possa guiar mentes e corações nos tempos a viver. O futuro será testemunha.

Obrigado pela vossa atenção.

Fonte: Conselho Federal da OAB