Juristas e filósofo debatem futuro da advocacia com desafios tecnológicos no mundo pós Covid-19

O futuro da advocacia em uma nova realidade que se descortina com a pandemia da Covid-19 foi tema de um painel do I Congresso Digital Covid-19: Repercussões Jurídicas e Sociais da Pandemia, organizado pela OAB e pela ESA Nacional. O evento contou com a participação do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Edson Fachin, do historiador e filosófo Leandro Karnal e do diretor tesoureiro do Conselho Federal da OAB, José Augusto Araújo de Noronha. A mediação foi feita pela vice-presidente da OAB Paraná, Marilena Winter.

Ao abrir os trabalhos, Marilena prestou solidaridade a todas as pessoas que sentem os impactos da Covid-19, seja de maneira pessoal, social ou econômica. Ela também mencionou como esse período está levando a sociedade a fazer reflexões. “É hora de refazer a rota, ressignificar conceitos e rever valores”, disse a vice-presidente da OAB Paraná. Sobre a advocacia, ela citou como a profissão precisa se reinventar em um momento de tantas alterações sociais. “Nós advogados teremos que mais uma vez mostrar nosso valor”.

Realidade da profissão

O diretor-tesoureiro do Conselho Federal iniciou sua exposição apresentando um panorama da realidade da advocacia brasileira em números. Atualmente, o Brasil tem 1,2 milhão de advogados, com praticamente 50% de mulheres. Só nos últimos cinco anos, 407 mil novos profissionais ingressaram na advocacia. No Brasil, existem hoje 1.786 cursos de direito em funcionamento, com 863 mil acadêmicos. Se todos esses estudantes se formarem e ingressarem na profissão, o Brasil chegará a 2 milhões de advogados.

Noronha também falou sobre as mudanças na realidade profissional que se intensificaram nesse período de enfrentamento ao novo coronavírus. “Cada vez mais o mundo será virtual na advocacia, os clientes nos procuram cada vez mais para reuniões on-line e há muitos casos em que os advogados nem chegam a encontrar os clientes pessoalmente”, descreveu.

“Temos preocupação com a vida dos colegas, especialmente os novos”, disse Noronha, que também já foi presidente da OAB Paraná. “O futuro será cada vez menos de contato entre as pessoas, ensejará que o advogado seja especialista no que faz. Não há mais espaço para quem se diz especialista em várias áreas. As pessoas serão procuradas por especialidade máxima”, apostou. Ele também ressaltou a importância de se aliar conhecimento tecnológico e sensibilidade humana. “Tenho a convicção que novas áreas também aparecerão. Advogados especialistas em direto eletrônico nos ajudaram a exercer a profissão nesse momento. Nada substituirá um bom advogado que seja especialista e humanista e que poderá atender a todas as demandas que são colocadas”, concluiu Noronha.

Tecnologia e habilidades tradicionais

O filósofo Leandro Karnal contou que é filho de jurista e cresceu vivenciando o mundo do direito, com até mesmo uma estátua de Santo Ivo na sala de casa. Ele observou que no direito, como nas religiões e nas escolas, são muito fortes a hierarquia, o formalismo e a tradição. “O direito se desapega lentamente dos arcaísmos”, disse, lembrando que, em muitos casos, os profissionais recorrem até mesmo a linguagem arcaica ao se expressar. “É tradicional do ser humano a melancolia por uma idade de ouro”, pontuou o historiador.

Demanda-se dos jovens profissionais a habilidade de lidar com inovação. “Você precisa aprender a tecnologia mais avançada, usar a já citada inteligência artificial para buscar informações que antes demandariam horas em uma biblioteca. E que a melhor tecnologia sirva ao melhor propósito”, sintetizou.

Por outro lado, Karnal ressaltou a importância de princípios e qualidades tradicionais. “O bom direito é feito de uma excelente hermenêutica. A capacidade interpretativa implica pleno domínio filosófico e da Língua Portuguesa. Quem ama o direito ama texto, leitura, interpretação e a hermenêutica possível”, descreveu o filósofo. Para ele, todo estudante do ramo deveria decorar o Artigo 5º da Constituição e adotá-lo como propósito de vida.

“Por mais moderno que seja seu computador, é necessária a leitura minuciosa e lenta. Cabe ao estudante de direito ter a capacidade de aliar a tecnologia, a boa energia, domínio da língua pátria, a capacidade de leitura e os valores do direito que são os mesmos de sempre: a justiça, a isonomia, que a lei seja igual para todos”, frisou o filósofo.

O ministro do Fachin relembrou outras epidemias que o mundo vem enfrentando desde o início do século 21, como a SARS e o Ebola e que, agora, a sociedade chegou a um extremo. “Estamos não diante de uma causa que gerará efeitos, mas de um efeito que gerará outros efeitos nessa fractalidade que se tornou a vida”, disse o ministro. “Estamos vendo os efeitos trágicos, cruéis e assimétricos, de extensões planetárias. Foi retirada a tampa de um caldeirão de injustiça que sociedades desiguais têm”.

Para Fachin, o direito e as profissões da área “estão no centro nervoso da pandemia”. Ele destacou a importância dos valores que são cultivados e defendidos por esses profissionais. “A democracia é condição de possibilidade para enfrentar qualquer crise social, jurídica e também a pandemia”, disse.

O ministro mencionou a dicotomia entre o desejo e o querer que a sociedade vem vivenciando: “Queremos respostas da ciência, mas também sonhamos soluções mágicas. Queremos segurança jurídica, plena democracia, mas não aceitamos a ideia que a democracia tem ruídos”, ponderou.

Mesmo diante dos desafios, Fachin aposta que esse não seja o século dos despojos. “Se nos perguntarem para onde vamos, a minha resposta indica o caminho da libertação e solidariedade. Libertação do hiperconsumo, adoção de tecnologias para não desmatar, para não mentir, para aniquilar com os povos nativos, como indígenas e quilombolas”, disse o jurista.

Fachin finalizou fazendo um paralelo com as agressões de que o afro-americano George Floyd foi vítima. “O vírus não pode ser um joelho sobre o nosso pescoço. Nós temos o direito de respirar. Precisamos desse oxigênio, que transmita direito e ética. E que as mortes não sejam em vão”, concluiu o ministro do STF.