OAB em defesa da liberdade do consumidor de acesso à Justiça

A Ordem dos Advogados do Brasil, em inúmeros eventos, já apoiou o uso da plataforma Consumidor.gov.br como um ágil e importante mecanismo de diálogo e negociação entre consumidores e fornecedores. A carga oceânica de processos em tramitação exige que sejam desenvolvidos instrumentos alternativos e adequados para a solução de conflitos e a prevenção de litígios.

Todavia, a advocacia está há vários meses[1] apontando algumas situações pontuais que contrariam a busca pela expansão do uso da plataforma. A mais recente delas ocorreu no dia 28/01/2021, quando a Comissão Especial de Defesa do Consumidor do Conselho Federal da OAB participou da 25ª Reunião Nacional do Sistema de Defesa do Consumidor, organizada pela SENACON[2] em defesa da liberdade.

A CEDC-CFOAB destacou dois pontos fundamentais na defesa da liberdade de escolha do consumidor quanto ao meio mais adequado para a solução de conflitos: 1. a necessidade de facilitação da atuação dos advogados na plataforma Consumidor.gov.br e; 2. a impossibilidade de se exigir prova pré-constituída da pretensão resistida como requisito de acesso ao Poder Judiciário.

Resolver o problema diretamente com o fornecedor, pela internet, é excelente. Todavia, em algumas situações mais complexas, o consumidor prefere contar com o apoio de uma assessoria especializada ao invés de negociar sozinho com o fornecedor. O consumidor que conta com a consultoria, a assessoria e a direção jurídicas (atividades privativas de advocacia na forma do art. 1º, II, da Lei nº 8.906/1994), conhece melhor os riscos do litígio, passando a ter mais condições de negociar com seu parceiro contratual e alcançar uma solução amigável mais adequada.

O advogado é indispensável à administração da justiça, presta serviço público e exerce função social. O consumidor que conta com a consultoria, a assessoria e a direção jurídicas (atividades privativas de advocacia na forma do art. 1º, II, da Lei nº 8.906/1994) de um advogado, conhece os riscos do litígio, passando a ter melhores condições de negociar com seu parceiro contratual e alcançar uma solução amigável mais adequada.

Os Termos de Uso do Consumidor.gov.br (versão atualizada em 25 de março de 2020) admitem a atuação de representante legal por qualquer pessoa física com capacidade civil plena, que possua documentação específica para representar legalmente o consumidor no registro de uma reclamação. O item 4, inciso V, letra ‘a’ do aludido regramento indica que “em caso de representação legal de pessoa física ou mandato conferido por procuração, o cadastro deve ser realizado em nome do consumidor, apresentando-se na plataforma a documentação específica para tal representação.” [3] Não poderia ser diferente, uma vez que a representação legal é um direito do cidadão.

O cadastro da reclamação precisa ser realizado em nome do consumidor. O problema é que atualmente a plataforma admite somente um cadastro (e uma senha) por CPF. O bloqueio do sistema para a criação de uma senha específica para as reclamações realizadas por intermédio de um advogado viola a liberdade de escolha do consumidor. E não se pode sequer cogitar a hipótese de a senha, pessoal e intransferível, ser compartilhada.

É fundamental que os 1.208.430[4] advogados do Brasil, que devem bem representar, em Juízo ou fora dele, os 212.627.300 brasileiros[5] e inúmeros visitantes[6], tenham acesso à plataforma Consumidor.gov e possam, nela, representar adequadamente os seus clientes sem impedir que o cidadão, quando desejar, registre a sua reclamação individualmente.

Uma atualização no sistema é imperiosa para que o cadastro permita a representação, como a Constituição, a Lei e o Regulamento garantem. Os bons advogados são comprometidos com a eficiência na resolução dos problemas de seus clientes. Mas o efeito prático dos obstáculos de acesso é evidente: se o advogado tem dificuldade de representar o seu cliente na plataforma Consumidor.gov ele vai acionar do Poder Judiciário, o que constitui um desserviço em termos de política pública, na medida em que a plataforma Consumidor.gov foi criada justamente para prevenir litígios e resolver os problemas de modo célere e eficiente.

Sabe-se, igualmente, que também o consumidor sopesa custo e benefício da reclamação, quanto tempo precisará investir para exercer um direito seu. Se o valor do prejuízo não compensar, deixa-se de exercer um direito. E isso é ruim para o Sistema Nacional de Defesa dos Consumidores, os pequenos danos individuais não reclamados se tornam prejuízos imensos no plano coletivo.

A OAB luta igualmente pela preservação do direito constitucionalmente assegurado (CRFB, art. 5º, XXXV) de acesso do consumidor ao Poder Judiciário. Quem tem que decidir qual é o meio mais adequado para a resolução do seu conflito é o cidadão. A tutela do consumidor pressupõe o respeito à sua liberdade. E as portas do judiciário devem estar abertas ao jurisdicionado. Logo, a resposta diante da lesão ou ameaça a direito do consumidor não pode ser a exigência de prova pré-constituída da pretensão resistida ou, ainda pior, o esgotamento das esferas administrativas, um retrocesso absoluto, lesivo ao direito constitucionalmente assegurado de acesso ao Poder Judiciário.

Recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo[7] reconheceu que o condicionamento ao recebimento da petição inicial à comprovação de que o pleito foi previamente formulado pelo consumidor na plataforma consumidor.gov.br violaria o princípio da inafastabilidade da jurisdição, insculpido no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal. A prestação jurisdicional tem sido retardada em diversas localidades do em razão de decisões semelhantes, que exigem do consumidor, à revelia da lei, prova pré-constituída da pretensão resistida.

A concepção de um direito de ação condicionado apenas se justifica para aqueles que o entendam como direito a um provimento sobre o mérito.[8] Nossa percepção é outra. A Constituição assegura a impossibilidade de exclusão de alegação de lesão ou ameaça, tendo em vista que o direito de ação (provocar a atividade jurisdicional) não se vincula à efetiva procedência do quanto alegado.[9] Conforme a lição de Chiovenda, quando uma prestação não é satisfeita, diz-se lesado o direito e da lesão de um direito pode exsurgir um direito a uma nova prestação. A partir disso, a ação consolida-se como um direito autônomo, visando a atuação da vontade concreta da lei, inclusive por meio da sua simples afirmação (a ação de mera declaração).[10]

A reclamação extrajudicial e a tentativa de conciliação com o fornecedor de produtos e serviços não é condição da ação ou requisito para o processamento da petição inicial, mas obsta ou é causa de suspensão do prazo decadencial (art. 26, parágrafo 2º, I, Código de Defesa do Consumidor), caracterizando direito potestativo do consumidor. A livre opção do consumidor de utilizar ou não o Consumidor.gov.br ou outros meios alternativos de solução de conflitos, obstar o direito básico de ressarcimento de danos morais e materiais do consumidor e o seu acesso direto ao Judiciário.

Em essência, a finalidade do Consumidor.gov é resolver problemas de modo célere e eficiente. Ainda que inicialmente não se tenha imaginado a participação de terceiro nessa ferramenta, o tempo revelou que ela pode ser aprimorada[11], mas deve deixar de ser subutilizada[12] para servir como método adequado de prevenção e resolução de litígios. Mas essa plataforma não pode servir como obstáculo ao acesso ao Poder Judiciário, pois o princípio da inafastabilidade garante uma tutela jurisdicional adequada à realidade da situação que é apresentada pelo jurisdicionado. É imperioso assegurar que o consumidor – enquanto cidadão – tenha a liberdade de decidir qual meio de resolução de conflitos lhe é mais adequado e possa optar por estar ou não sendo representado por um advogado.

Autoras: Laís Bergstein e Marié Miranda

[1] Vide Nota Técnica nº 01/2019 da CEDC/CFOAB.

[2] Disponível em: <https://youtu.be/cqIerbv2C9c>. Acesso em: 28 jan. 2021.

[3] Termos de Uso do Consumidor.gov.br. Disponível em: <https://www.consumidor.gov.br/pages/conteudo/publico/7>. Acesso em: 28 jan. 2021. Destaques nossos.

[4] CFOAB. Quadro de Advogados. Dados atualizados em 28 de janeiro de 2021. Disponível em: <https://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/quadroadvogados>. Acesso em: 28.01.2021.

[5] IBGE. Instituto de Geografia e Estatítica. População brasileira em 28 de janeiro de 2021. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/index.html>. Acesso em: 28.01.2021.

[6] Estima-se que o Brasil atraia atualmente pouco mais de 6,5 milhões de turistas estrangeiros por ano.

[7] PETIÇÃO INICIAL. EMENDA. Ação revisional de cédula de crédito bancário. Determinação de aditamento da petição inicial, condicionando o prosseguimento do feito à prévia submissão à agravada da questão objeto da lide, mediante utilização da plataforma eletrônica consumidor.gov.br. Inadmissibilidade. Hipótese em que a r. decisão recorrida afronta o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição. Decisão reformada. Recurso provido. Dispositivo: deram provimento ao recurso.  (TJSP;  Agravo de Instrumento 2224837-09.2020.8.26.0000; Relator (a): João Camillo de Almeida Prado Costa; Órgão Julgador: 19ª Câmara de Direito Privado; Foro de Macatuba – Vara Única; Data do Julgamento: 12/02/2021; Data de Registro: 12/02/2021)

[8] Fredie Didier Jr. Um réquiem às condições da ação. Estudo analítico sobre a existência do instituto. Revista Forense, v. 351, p. 69-71.

[9] Conforme pontua Fredie Didier Jr: “Quando a Constituição fala de exclusão de lesão ou ameaça de lesão do Poder Judiciário quer referir-se, na verdade, à impossibilidade de exclusão de alegação de lesão ou ameaça, tendo em vista que o direito de ação (provocar a atividade jurisdicional) não se vincula à efetiva procedência do quanto alegado; ele existe independentemente da circunstância de ter o autor razão naquilo que pleiteia; é direito abstrato.” DIDIER JR, Fredie. Notas sobre a garantia constitucional do acesso à justiça: o princípio do direito de ação ou da inafastabilidade do poder judiciário. São Paulo, Revista de Processo, v. 108, p. 23-31, Out./Dez. 2002.

[10] CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. V. I. São Paulo: Saraiva, 1965. P.17, 25-27.

[11] Um marco relevante foi a edição do Decreto nº 10.197, de 2 de janeiro de 2020, que estabeleceu o Consumidor.gov.br como plataforma oficial da administração pública federal direta, autárquica e fundacional para a autocomposição nas controvérsias em relações de consumo.

[12] Embora expressivo o volume de reclamações, o Boletim Consumidor.gov.br 2019, publicado na plataforma em 14/06/2020, revela que havia, até aquele ano, apenas 1,8 milhão de usuários cadastrados. A quantidade é muito pequena considerando-se a população brasileira economicamente ativa. Disponível em: <https://www.consumidor.gov.br/pages/publicacao/externo/>. Acesso em: 28. jan. 2021.