“A prepotência de saber o que é melhor nega ao outro o direito de ser ouvido”, afirma o ministro Fachin

O julgamento do Recurso Extraordinário 670.422,  tratando da possibilidade de alteração de gênero no assento do registro civil de transsexual, mesmo sem a realização de cirurgia para redesignação de sexo, foi o tema central da conferência proferida pelo ministro Luiz Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), para encerrar, no início da tarde deste sábado (23/9) o V Congresso do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil).

Ao anunciar a fala do ministro para a plateia atenta que tomou todo o auditório da OAB Paraná, o presidente da seccional, José Augusto Araújo de Noronha, foi aplaudido por expressar o desejo de que Fachin volte à advocacia um dia, depois do “empréstimo ao Judiciário”. Ao lado de uma das organizadoras do evento, a professora Ana Carla Harmatiuk de Matos, Noronha, presidindo a mesa, lembrou seu tempo de universidade. “Foi com o professor Fachin que a Ana e eu aprendemos a amar o Direito Civil. E com ele temos trabalhado todos os dias”, afirmou o presidente da OAB Paraná. “Ele nos dizia que o Direito Civil é a matéria mais importante, pois nos afeta desde antes de nascermos até a nossa morte”, completou a professora. Ana Carta destacou também a importância dos encontros periódicos do IBDCivil diante do fato de que o Direito está sempre em movimento.

Faltava pouco para as 13 horas quando o ministro Fachin tomou a palavra. Apontando para o relógio, brincou: “devíamos trocar o tema da conferência pelo direito fundamental à alimentação”. Depois de agradecer as palavras elogiosas que recebeu dos que o antecederam ao microfone, ele citou a Cancion Otoñal do poeta andaluz Federico Garcia Lorca, comparando o tema do poema à atmosfera outonal que nos domina neste início de primavera. “Os fatos renovados nos desafiam para que o porvir não seja apenas o futuro do pretérito”, afirmou, invocando a necessidade de expor a verdade com coragem tal qual o doutor Stockmann, personagem de Ibsen na obra “O inimigo do povo”. “Ao contrariar os interesses de uma cidade balneária por revelar que sua água estava contaminada, doutor Stockmann sofre críticas. Torna-se alvo da intolerância daqueles que o louvavam. Por expor a verdade, torna-se inimigo de todos”, ilustrou.

“Defender a Constituição e não cair na tentação autoritária é sustentar a liberdade como direito fundamental”, pontuou, citando ainda um conceito apresentado por Álvaro Ricardo de Souza Cruz no livro “O direito à diferença”, segundo o qual a responsabilidade com o outro é o que nos conforma como seres humanos.

O ministro destacou o número expressivo de decisões monocráticas que são fomentas no Supremo, destacando que deviam “ser exceção; não regra”. Segundo ele, mais de 70% do chega ao STF se enquadra na condição de instância recursal. O restante, menos de 30%, é competência originária. “Somente em meu gabinete entraram 5.330 novos processos de fevereiro para cá. Há também 101 inquéritos, 110 procedimentos de colaboração premiada e 41 pedidos de Habeas Corpus”, listou.

Para Fachin, discussões como as relativas ao recurso 670.422 é que permitem a defesa plena do texto constitucional. “A alteridade, a solidariedade e o respeito à dignidade humana e aos direitos fundamentais estão na Constituição”, reforçou. Ele citou ainda os textos da doutora em Direitos Humanos Camila de Jesus Melo Gonçalves e do jurista argentino Carlos Santiago Nino. Ambos, como ele, comungam da visão de que não é necessária uma cirurgia de mudança de sexo para o reconhecimento do gênero de identificação. “Não pode o Estado, à guisa de defender a liberdade, acabar por limitá-la ou aniquilá-la”, reforçou, acrescentando que “a neutralidade é fundamental e que o Estado deve abster-se de interferir em condutas que não afetam terceiros”.

O ministro declarou considerar a imposição de uma cirurgia de redesignação sexual como condição para o reconhecimento formal do gênero de identificação seria não apenas uma violência como também um considerável risco à saúde, especialmente porque o caso em tela envolvia um procedimento ainda em caráter experimental. “A prepotência de saber o que é melhor nega ao outro o direito de ser ouvido. O que Tribunal fez foi ouvir”, afirmou.

Fundamentação

Fachin fez ainda uma defesa veemente da argumentação jurídica,  afirmando que “é na diversidade e na complexidade que se compreende o Direto, não como instrumento mecânico, mas como processo dialógico”. Para ele, quase 30 anos depois da promulgação da Constituição, ainda somos desafiados a desatar nós que se projetam da espacialidade da política para a espacialidade do Direito. A complexidade das decisões das altas cortes, acrescentou, não pode ser reduzida a uma palavra – deferido ou indeferido. “O julgador dever prestar contas do caminho percorrido. Por isso, sem fundamentação ou com fundamentação insuficiente uma decisão judicial é, em tudo e por tudo, nula”, bradou, sob aplausos.

Depois de evocar citações de esperança extraídas da obra do escritor moçambicano Mia Couto, o conferencista terminou sua exposição com um apelo à resiliência formulado por meio da citação das estrofes finais de “Trova do vento que passa”, poema do português Manuel Alegre:

“Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não”.