Advocacia dativa na esfera criminal

O segundo cadastramento da advocacia dativa de 2018, realizado de 6 a 31 de agosto, recebeu 13.648 mil inscrições. A lista de interessados é organizada pela OAB Paraná, de acordo com a Lei 18.664/2015, e as nomeações serão feitas em sistema de rodízio.  Embora ainda existam pontos a serem aperfeiçoados, a Lei da Advocacia Dativa constituiu notável avanço para o exercício do direito de defesa.

Este é o entendimento do juiz de direito da Vara Criminal e Anexos da Comarca de Prudentópolis, José Augusto Guterres, que esteve na OAB Paraná para um debate sobre a atuação do advogado dativo e o direito de defesa no processo penal. Para o magistrado “a lei contribuiu para uma maior eficiência do sistema de Justiça, sob o ponto de vista do acesso das pessoas economicamente mais necessitadas.

Na avaliação de Guterres, houve sensível incremento na qualidade dos serviços advocatícios prestados sob a modalidade dativa, o que ele atribui ao maior número de advogados que passaram a realizá-los. “Do ponto de vista do magistrado, principalmente nas comarcas do interior, isso proporciona maior segurança no momento de proceder às nomeações, caso a caso. Sendo a advocacia essencial para a prestação jurisdicional, não era mais concebível que o ajuizamento de ações e o andamento de processos dependesse de poucos advogados com disponibilidade para, muitas vezes, atuar gratuitamente, e não raro sem a devida especialização na área de competência dos respectivos feitos”, afirmou.

Para o magistrado, um dos principais desafios da advocacia dativa no âmbito processual é saltar do respeito ao devido processo legal em seu aspecto formal, para o substancial, em que o advogado tenha condições e se disponha a atuar plenamente nas respectivas defesas, seja nos casos mais singelos ou complexos. Confira a íntegra da entrevista concedida pelo juiz de direito à Revista da Ordem:

Qual a sua avaliação sobre a Lei da Advocacia Dativa?

Em geral, avalio como positiva, por ter trazido vantagens aos jurisdicionados em comparação com a situação anterior à sua promulgação e regulamentação através de resoluções da Procuradoria-Geral do Estado e Secretaria de Estado da Fazenda (PGE/SEFA). Isso porque, num contexto de ausência – ou insuficiência – de defensores públicos (a quem a Constituição da República efetivamente incumbiu o patrocínio judicial dos interesses dos necessitados, em seu art. 134), o cidadão pode agora contar de forma mais rápida e objetiva com os serviços profissionais de um advogado. Para tanto, referida Lei Estadual garantiu, em primeiro lugar, o pagamento dos honorários advocatícios aos defensores dativos; além disso, previu a obrigatoriedade de prévia inscrição dos advogados interessados (por áreas de atuação) em lista específica a ser fornecida periodicamente ao Poder Judiciário; e, a par disso, estatuiu que as nomeações devem ser feitas alternada e sequencialmente pelos magistrados. Dessa forma, aqueles que precisam dos serviços dos dativos ganham um tempo precioso, pois evitam-se em boa medida declínios de nomeação pelos advogados, e, estes, ao mesmo tempo, têm em mãos um instrumento para lhes garantir a devida remuneração pelos serviços prestados, assim como tratamento igualitário entre si, coibindo preferências e voluntarismos que já não se mostram necessários. Nesse sentido, no que concerne às atribuições da Advocacia, a mencionada Lei contribuiu para uma maior eficiência do sistema de Justiça, sob o ponto de vista do acesso das pessoas economicamente mais necessitadas.

Trata-se de uma regulamentação nova, que começou a ser implantada efetivamente em 2016. Podemos falar que houve uma mudança na cultura dos magistrados em relação ao tema neste período? Que pontos o senhor destacaria?

Não conheço estudos que denotem eventual mudança na cultura dos magistrados, por assim dizer. O que posso afirmar, contudo, com base em minha experiência pessoal de exercer a judicatura antes e depois do advento da Lei Estadual nº 18.664/2015 e suas regulamentações no Estado do Paraná, é que, felizmente, de 2016 para cá, para além de uma maior brevidade no ajuizamento das demandas dos jurisdicionados necessitados, houve sensível incremento na qualidade dos serviços advocatícios prestados sob a modalidade dativa, provavelmente em decorrência do maior número de advogados que passaram a realizá-los. Assim, do ponto de vista do magistrado, principalmente nas comarcas do interior, isso proporciona maior segurança no momento de proceder às nomeações, caso a caso. Sendo a advocacia essencial para a prestação jurisdicional, não era mais concebível que o ajuizamento de ações e o andamento de processos dependesse de poucos advogados com disponibilidade para, muitas vezes, atuar gratuitamente, e não raro sem a devida especialização na área de competência dos respectivos feitos.

Especificamente sobre a advocacia dativa na esfera criminal, que foi tema de sua palestra na OAB, no mês de agosto: de que forma a atuação do advogado dativo reflete no direito de defesa no processo penal?

Neste ponto, em primeiro lugar, não podemos olvidar que – por mecanismos econômico-sociais verificados no estudo da Criminologia – em larga escala é justamente em decorrência do déficit no cumprimento das políticas constitucionais relacionadas aos direitos fundamentais individuais, coletivos e sociais que o Direito Penal acaba por se mostrar “necessário”, via de regra, em desfavor das camadas sociais mais vulneráveis economicamente, em prol dos estratos mais abastados. Em outras palavras, quanto menos o Direito Constitucional é implementado pelas instituições da República em favor de todos, mais o Estado é chamado a reprimir ilícitos praticados pelas classes sociais mais empobrecidas da população. São duas faces da mesma moeda, apesar de nenhum estudioso sério da área criminal indicar este ramo como capaz de solucionar qualquer mazela da sociedade. Portanto, muito embora já demonstrado que os mais ricos igualmente cometam crimes (inclusive de consequências mais amplas e graves à sociedade), fato é que a grande “clientela” do Processo Penal é formada por pessoas pobres (ou empobrecidas por um sistema que permite tamanha desigualdade), as quais, por razões óbvias, não têm condições de constituir advogados para suas defesas quando processadas, contando assim, quase sempre, com os serviços da Defensoria Pública, ou, no caso, de defensores dativos.

Neste contexto, a advocacia dativa tem um papel relevante…

Falar de advocacia dativa na área criminal, então, nesse contexto em que vivemos, é falar sobretudo de uma das únicas oportunidades em que aos desvalidos o Estado se propõe a – ainda que minimamente – garantir um direito humano fundamental, que é o direito de Defesa (e aqui, aliás, não se pode fechar os olhos para a disparidade de investimento estatal entre a instituição incumbida da acusação, o Ministério Público, e a da defesa, a Defensoria – em pleno funcionamento aquele, como deve ser; e praticamente inoperante esta em muitos aspectos e locais, em clara violação aos ditames constitucionais). Tal é a responsabilidade do advogado dativo, hoje. Não se trata apenas e tão somente de, caso a caso, proporcionar que os necessitados se defendam de imputações delitivas. Em última instância, trata-se de, infelizmente com muitas limitações, garantir a integridade do ordenamento constitucional em ponto nevrálgico para sua configuração democrática, pois sem o efetivo e pleno exercício do direito de Defesa, impera a arbitrariedade e a violência estatal desmedida.

Quais os principais entraves/desafios nesta área específica?

Na toada do que mencionei antes, um dos desafios agora, no âmbito processual, é saltar do respeito ao devido processo legal em seu aspecto formal (basicamente garantindo a presença do advogado no processo), para o substancial (em que o advogado tenha condições e se disponha a atuar plenamente nas respectivas defesas, seja nos casos mais singelos ou complexos). Isso passa, por exemplo, pela necessidade de implementação de instrumentos para fazer com que advogados e assistidos (presos ou soltos) tenham prévia e reservada entrevista entre si, com a devida antecedência, e não apenas instantes antes das audiências (ou já após sua instalação); passa também pela necessidade de valorização, até mesmo sob o aspecto remuneratório, de atuações profissionais destacáveis do ponto de vista qualitativo; e passa ainda pela necessidade de respeito às prerrogativas do advogado, entre outras questões.

Quais?

Uma delas, de especial relevância a nosso ver, é a imperiosa necessidade de alteração legislativa a obrigar a atuação de defensor público ou advogado dativo também na fase de investigação criminal, pois da forma como hoje o tema está regulado, nessa fase tem-se clara violação ao princípio da Isonomia. Deveras, observa-se no dia a dia injustificável tratamento diferenciado a pessoas submetidas às mesmas condições jurídicas. Veja-se, nesse sentido, que é facultado ao investigado ou indiciado constituir advogado para ter acesso aos elementos documentados do Inquérito Policial, apresentar informações à Autoridade Policial, acompanhar diligências, incluindo o ato de interrogatório etc. Mas, na prática, evidentemente, somente indiciados com condição econômica suficiente exercem tal faculdade que lhes é legalmente conferida, sem que haja qualquer medida para garantir que pessoas que não têm essa mesma condição exerçam a mesma faculdade. No atual estado de coisas, portanto, restam violados os princípios da Isonomia e da Ampla Defesa, o que deve ser mudado em prol da integridade do sistema constitucional e legal através da previsão de atuação, ainda que para fins de orientação jurídica, da Defensoria Pública ou de advogados dativos durante a fase investigação criminal.

 

O senhor destacaria outros pontos?

Destaco, ademais, como entrave nesta área do processo penal uma certa visão deturpada da atuação do advogado dativo, como a se tratar de uma advocacia de “segunda linha”, por assim dizer, em que a presença do defensor se materializa apenas “pro forma”, mas não se traduz em real atuação defensiva em prol dos direitos e interesses do assistido, na medida em que não é considerada com sua devida seriedade e importância. Isso de fato é observável em condutas pontuais de magistrados e servidores, mais ou menos conscientes disso, no trato com os respectivos processos e atos judiciais, assim como, algumas vezes, por parte dos próprios advogados, que podem acabar laborando com menos afinco e adotando postura menos combativa quando se trata de feitos em que atuam como dativos. Portanto, a superação desse senso comum em que a advocacia dativa não é tratada com a devida seriedade se faz cogente   para o salto de qualidade necessário acima mencionado.

Finalmente, mas sem a pretensão de exaurir o tema, vejo na prática como dificuldade, ainda, o fato de a atual Resolução que regulamenta a Lei Estadual da Advocacia Dativa não distinguir mais áreas de especialização além dos tradicionais “Criminal”, “Cível e Família”, “Infância e Juventude”, e “Juizados Especiais”. Veja-se, a título ilustrativo, a seara da Execução Penal, pouco tratada durante a faculdade de Direito, de todo sensível a um dos valores supremos do Estado Democrático, isto é, a Liberdade, e que na prática é uma das que menos tem suas regras cumpridas pelas autoridades estatais, tendo em conta o já reconhecido pelo STF “estado de coisas inconstitucional”. Trata-se de uma vertente do Direito Penal recheada de entendimentos dissonantes na jurisprudência, que boa parte dos advogados criminalistas inscritos na lista fornecida pela OAB não domina suficientemente, mas na qual se vê obrigada a atuar porque assim se compromete quando genericamente se inscreve como penalista, podendo, portanto, acabar prejudicando involuntariamente seus assistidos.

Como tem sido a sua postura em relação ao tema, enquanto magistrado?

De minha parte, verificando o contexto delineado, assim como as dificuldades e desafios comentados, procuro superá-los através da abertura ao diálogo com os advogados dativos da comarca e sua instituição de classe, a OAB. Também creio ser importante dar a devida atenção aos reclamos trazidos pelos próprios assistidos sobre a questão, seja durante as audiências, seja junto aos balcões dos Cartórios, para que eventuais problemas sejam solucionados com a devida celeridade. Nomeadamente no que se refere ao processo penal, por consequência do referido anteriormente, cumpre sempre ter em mente o direito de Defesa não como favor, benefício ou privilégio de quem se vê acionado perante o Poder Judiciário, mas como direito fundamental que alicerça, em sua essência, a configuração que se quer democrática de nosso Estado. Creio que somente assim o Poder Judiciário proverá uma tutela jurisdicional adequada, com tratamento isonômico às partes, imparcialidade nos julgamentos, e independência judicial.


O espaço fica aberto a outras considerações que o senhor avaliar importantes.

Por fim, gostaria de insistir que a Lei da Advocacia Dativa constitui notável avanço no exercício do Direito de Defesa, como assentado desde o início desta entrevista. De fato, mesmo que num cenário ideal (do qual estamos muito longe) a Defensoria Pública estivesse funcionando tal como previsto no ordenamento jurídico, não parece factível a possibilidade de prescindir da advocacia dativa, considerando o crescente acúmulo do acervo processual e a necessidade de racionalização dos serviços dos defensores públicos. Por isso, não se pode descurar da atual importância da advocacia dativa para o sistema judicial, para o Estado Democrático de Direito, e, portanto, para a dignidade da pessoa humana, ponto de partida e de chegada de todas as instituições constituídas pela Carta Magna.

Por outro lado, não posso deixar de registrar também que a implementação e adequada estruturação da Defensoria Pública é obrigação inarredável dos estados, sem margem à discricionariedade, de acordo com a Constituição da República (art. 134), sendo que a advocacia dativa não pode lhe fazer as vezes integralmente. Há uma série de atribuições constitucional e legalmente previstas que acabam não sendo realizadas, uma enorme lacuna no sistema fica sem ser preenchida. Vide, a propósito, as funções institucionais do art. 4º da Lei Complementar nº 80/1994 (Lei Orgânica da Defensoria Pública), que abrangem muito mais do que a simples representação processual individual dos necessitados em Juízo, alcançando, entre outras, a promoção de direitos individuais e coletivos de grupos vulneráveis. Outrossim, por via de consequência, há prerrogativas diferenciadas conferidas aos defensores públicos, de modo que ao advogado dativo não se pode exigir que lhe substitua de todo.

Logo, parece-me que, juntamente com o aperfeiçoamento do sistema de advocacia dativa, cumpre a todas as instituições comprometidas com os direitos e garantias constitucionais, incluindo aí a OAB, levantar a bandeira da estruturação plena e adequada da Defensoria Pública, como medida fulcral para o acesso à Justiça e pleno exercício do direito de Defesa pelos necessitados.